O "Fine Tuning" é um argumento de intencionalidade baseado na aparente organização e "afinação precisa" do universo. Chamo argumento de intencionalidade porque é a atribuição de intenção ao facto de o universo ser regido por leis e constantes que se não fossem exactamente estas, o universo era muito diferente.
Se as leis fossem apenas ligeiramente diferentes, e as constantes conhecidas apenas ligeiramente alteradas, uma qualquer, o universo teria uma aparência absolutamente diferente. Podia ser tudo só protões por exemplo. E no entanto é de tal forma que parece desenhado especificamente para a existência humana - é o chamado principio antrópico.
O facto de este universo ser como é e não de outra maneira, dizem os crentes, é a prova que ele foi criado com um intenção. O céptico responde que se o universo fosse de outra maneira, nenhum de nós estava aqui para fazer a pergunta, pelo que não deveria ser motivo de espanto o universo ser de modo que permita a existência de vida inteligente.
E eu naturalmente, estou de acordo com o céptico. Chama-se a isto o princípio antrópico fraco. E se assim não fosse teríamos de concluir que o universo foi desenhado não para existir o homem mas sim para existirem parasitas. De facto, um ténia poderia gabar-se que o intestino humano parece especialmente concebido para que ela exista e o universo concebido especialmente para que existam intestinos humanos. Isto se levar-mos a sério a questão da intencionalidade.
Por outro lado, a situação é um bocado análoga a perguntar porque é que pi tem o valor que tem. É porque não podia ter outro. Se não, não era uma esfera. O crente argumentará que existem outras constantes que parecem ter uma origem mais arbitrária e portanto poderiam ser de outra forma. Para além de eu não saber se podiam ou não ter outra forma, uma vez que tenho de dizer que em alguns casos não posso provar que podiam, apenas posso dizer que é tão legitimo dizer que podiam como não podiam.
Mas nem é este o meu argumento principal. O meu argumento principal é que essa intencionalidade tem origem na mesma tendência humana de atribuir intenção a outros fenómenos naturais, e que não há nada de racional acerca disso. E que sendo esta a explicação mais simples e plausível, não devemos partir para outra sem provas.
A atribuição de intencionalidade a fenómenos naturais esta bem documentada. Para além do "fine tuning" que é dos últimos redutos, podemos ver como o vento, os trovões, a chuva, a vida, a sorte, a doença, etc, foram todos em dada altura explicados por vontades de deuses, duendes ou demónios. Conforme fomos compreendendo melhor estes fenómenos e os fomos capazes de explicar de uma forma mais precisa, fomos empurrando a intencionalidade para outras coisas que ainda não podíamos explicar.
Provavelmente a atribuição de intencionalidade à natureza foi muito útil. Durante milénios foi a melhor explicação possível, o que terá proporcionado alguma sensação de controle. Por outro lado, identificar intenção num fenómeno desconhecido, deverá ter salvo muitas vidas. Porque mais valia elevar o nível de alerta para um fenómeno natural, estar enganado mas sobreviver, do que considerar que determinado fenómeno era devido ao acaso e perecer nas garras de um predador com intenções homicidas (1). Ter medo do escuro, ver formas nas sombras ao luar, atribuir intenção a sons e barulhos, terá salvo muitas vidas e terá sido por esta razão seleccionado positivamente ao longo da evolução. E terá sido o inicio da crença no sobrenatural, que não é mais do que ver intenção onde ela não existe. Isso provavelmente nasce connosco (2).
Resta-me agora terminar, depois de ter adiantado uma explicação simples, verificável na história e ciência para o argumento da intenção ou do desenho inteligente concluir que fazê-lo não é sequer lógico.
Pois se consideramos o "Fine Tuning" como argumento directo para intencionalidade, ao postularmos um criador para que seja a origem dessa intencionalidade passamos a ter de explicar em deus essa mesma intencionalidade. Porque tudo em deus parece ser ainda mais perfeitamente organizado para que possa criar um universo.
Na realidade, o argumento do "Fine Tuning" é só uma variante do argumento de S. Agostinho que diz que o universo é tão organizado que só pode ter tido um criador mais organizado que ele próprio. E que da origem sempre a termos de ter criadores para o criador até ao infinito.
A questão está em que explicar complexidade de uma entidade postulando uma entidade acima só "empurra para cima" a solução do problema. Se o universo é tão complexo que "aparenta Fine Tuning", como é que postular algo ainda mais complexo e inexplicável resolve o problema da origem da complexidade e "Fine Tuning"? Se o universo é tão complexo e afinado que parece ter sido concebido inteligentemente para um fim, como é que postular uma entidade ainda mais complexa e afinada resolve o problema?
Afinal o que é mais provável que surja do acaso, a entidade mais complexa ou a menos complexa? É que se é a primeira, não implica que deus existe, porque a complexidade não é um problema para explicar por si, teríamos de provar primeiro que deus existe então para presumindo que deus é mais complexo, explicar a segunda. Se é a segunda voltamos a não precisar de deuses porque aceitamos que o mais provável é o universo ter aparecido primeiro.
E agora a explicação do titulo, para quem não tiver ficado convencido. Eu não disse que era a refutação do argumento do "fine tuning". Essa só o conhecimento profundo do universo trará, conforme for mostrando porque é que as constantes têm o valor que têm, se o universo só pode ser este ou não, etc.
Isto é mostrar que o argumento do "Fine Tuning" é fraco e que há outras abordagens não só muito plausíveis, como mais consistentes com o que se sabe e pode saber. É desmistificar. Tornar mais claro e não tornar mais confuso.
Se o universo podia ser de outra maneira que não albergasse vida, é óbvio que não teria ninguém a questionar-se sobre esse problema. Se não podia então o problema nem se põe.
E para aqueles que estão a pensar na sorte deste universo ter aparecido pensem na sorte que foi entre milhares de espermatozóides e de óvolos que existem no universo se terem juntado logo os que davam origem a si. Fantastico, não? Há, e parabéns. Mas não esqueça que o universo não foi criado para a ténia e pela mesma razão, nem para si. Podia ter sido outro espermatozóide, ou outra constante...
(1) ler mais aqui e na bibliografia deste post:
http://cronicadaciencia.blogspot.com/2010/03/porque-e-que-os-liberais-e-ateus-sao.html
(2) : Neste post refiro um estudo pertinente para o assunto onde se sugere que a capacidade de reconhecer vida seja inata e possa por vezes dar falsos positivos:
http://cronicadaciencia.blogspot.com/2009/09/reconhecer-vida-e-inato.html
Nota: Há de facto evidencia cientifica que mostra que estruturas organizadas não precisam de ter origem numa mais organizada ainda. A entropia pode, raramente, andar para trás:
http://cronicadaciencia.blogspot.com/2010/02/consumo-de-entropia.html
Update: desde que escrevi este post foram publicados estes dois livros com interesse para o tema:
1 - Do Stephen Hawking, "O grande Designio", minha "review" aqui:
http://cronicadaciencia.blogspot.com/2011/02/stephen-hawkings-and-leonard-mlodinow.html
2 - Do Victor Stenger, "A Falácia Do Fine-Tuning" aqui:
http://cronicadaciencia.blogspot.com/2011/07/fallacy-of-fine-tuning-por-victor.html