quarta-feira, 12 de junho de 2013

Raiva em Espanha.

Um cão, que andava à solta em Toledo, atacou 4 crianças antes de ser abatido pela policia. Enviado material para laboratório para diagnosticar possivel infecção pela raiva  (foi por PCR: polimerase chain reaction), o resultado veio positivo.

Como o cão tinha microchip, foi possível encontrar o dono. Assim ficámos a saber que o cão tinha vindo de Marrocos uns meses antes (onde provavelmente se infectou) e andou a viajar por Espanha, tendo chegado da Galiza uns dias antes dos ataques em Toledo. O que levanta a questão: qual a verdadeira dimensão do problema, que outros animais e pessoas poderá ter exposto à raiva.

A nossa península, já que é por essa perspectiva que temos de abordar o problema, tem tido muito poucos casos de raiva. Estava para efeitos práticos erradicada, pelo menos nos animais terrestres. O ultimo caso em Espanha tinha sido em 1975 em Malaga. Em 1966 a raiva tinha sido dado como erradicada. Em Portugal desde 1960 que se considera que não há raiva em animais autóctones.

No entanto, a enorme mobilidade humana e animal tem levantado preocupações, de que surjam focos de infecção. Em 2011 houve dois casos de raiva humana em Portugal, embora as pessoas tenham contraído a doença em países africanos de língua oficial Portuguesa. Ambas morreram.

Às vezes, embora raramente, ouço as pessoas questionar a razoabilidade de vacinar os cães para a raiva todos os anos. É por isto. É para fazerem uma "almofada protectora", de animais resistentes e impedir o vírus de chegar às pessoas e outros animais, na hipótese de algum caso extraordinário desatar para aí a espalhar vírus, como este cão de Toledo. É para conseguir a chamada imunização de rebanho - e manter a doença como "doença rara".

Porque é uma doença extremamente grave:

Uma vez que apareçam os sintomas  não há tratamento. Existem 5 casos de sobrevivência relatados (protocolo de Millwuakee) exceptuando os membro de uma pequena população indigena do Peru que parecem conseguir sobreviver e desenvolver imunidade, o que pode ser  por causa da estirpe do virus envolvida ser muito menos mortal ou por estes Peruanos  possuirem determinadas características genéticas que lhes conferem maior resistência. Seja como for para nós a mortalidade da Raiva é cerca de 100%.

E mesmo para estes 5 sobreviventes (desde sempre) pelo protocolo de Millwauakee, há uma nota a fazer: a raiva culmina sempre numa encefalite aguda, causada pelo vírus, de que as sequelas não podem ser senão pesadas.

Antes de aparecerem os sintomas, imediatamente a seguir à mordida ou arranhão por animal com raiva, é possível fazer um tratamento preventivo. Tem de ser feito com urgência. Se for, pode impedir o desenvolvimento da doença e o aparecimento de sintomas. No mundo 15 milhões de pessoas fazem o tratamento pós exposição todos os anos e isso crê-se que impede milhões de mortes por ano.

Mas para isso, provavelmente, é preciso suspeitar que o animal estava infectado já que é tão raro. Por isso existe o tal período de sequestro (que até pode ser em casa, em determinados casos) depois de uma mordida.  É que o vírus só aparece na saliva cerca de 10 dias antes de aparecerem os sintomas. Quem for mordido e puder verificar  que o animal continua saudável 15 dias depois, pode estar descansado. Mesmo que este animal venha a ter raiva um mês depois, não estava numa fase contagiosa. E a raiva é rara, mas como podemos ver não é impossível de aparecer, ainda para mais num mundo globalizado. E apesar de rara, (entre nós), é extremamente grave - como se disse, depois de aparecerem os sintomas não há cura. A taxa de mortalidade é 100% para todas as questões praticas. No mundo, mais de 55 mil pessoas por ano morrem de raiva.

Quanto aos sintomas - pode ser outro problema.  A sintomatologia é neurológica e comportamental. Mas os sintomas, e agora estou a falar de animais, não são obrigatoriamente o quadro clássico do animal raivoso a querer morder tudo e todos.  De facto, alguns autores notam que a apresentação atípica da doença é a regra e não a excepção. As fases clássicas usadas na descrição da evolução da doença são consideradas sem grande interesse clínico. Alguns animais, por exemplo, em vez de agitação desenvolvem apatia. Outros ficam paralíticos (que é sempre o final) sem passar pela fase furiosa.


Nos EUA por exemplo, onde existe raiva mas é rara, os veterinários podem começar por não suspeitar dessa doença quando ela aparece (1). A variabilidade dos sintomas e a sua raridade já levaram a que passe despercebida durante as primeiras consultas e tratamentos. Muitos nem nunca sequer viram raiva, como a maioria dos veterinários portugueses. Não é reconhecida pois pode parecer outra coisa qualquer do foro comportamental ou sobretudo neurológico. Muitas vezes com os veterinários e donos a fazer tudo o que podem para por  os animais a comer (por exemplo) e salvar-lhes a vida (impossível). Quando o diagnóstico final é feito, post-mortem, é causa de grande ansiedade em todos os envolvidos  (e é preciso encontrar todos para mandar fazer a pós-exposição). Se a apresentação for clássica, do animal raivoso, é mais fácil.

Mais algumas notas:

O período de incubação é extremamente variável. De dias a mais de um ano (descrito num ser humano)No cão a média é de 1 a 2 meses, mas longos períodos são também possíveis. Os períodos de quarentena típicos são de 6 meses, (para animais entrarem em países livres de raiva - e nós e os espanhóis devíamos ser tão chatos como os Ingleses).

O vírus é eliminado na saliva. Não penetra na pele integra, mas pode infectar através de mucosas.

Lavar com agua e sabão é o primeiro passo logo após a mordida (ou arranhão, contacto com ferida, etc)  de um animal suspeito. O segundo é iniciar o tratamento de pós exposição, ver aqui onde.

Uma vez que apareçam sintomas de paralisia ou raiva, a morte ocorre em cerca de 7 dias, menos ainda nos gatos.

É extremamente importante não perder o rastro aos animais que mordem (como explicado no texto). 

Existe uma doença parecida chamada pseudoraiva. (pseudo = falso)

A hidrofobia é típica da doença em humanos, mas não em cães e gatos. Por outro lado parece que os humanos são muito pouco dados a fazer a fase furiosa.

Nos EUA, a maioria dos casos em humanos desde 1990 foram transmitidos por gatos. Em princípio por 3  razões: 1 - Os cães estão quase todos vacinados e os gatos nem por isso. 2 - há mais gatos de estimação com vida livre que cães (normalmente o cão só sai do quintal ou da casa em determinadas ocasiões). 3 - O gato é uma animal cada vez mais popular como pet. Vacinem-os também.

Em Espanha tem havido casos de raiva em morcegos. Os morcegos podem transmitir a raiva  até através de aerossóis da sua saliva. No entanto sabemos empiricamente que isso é  muito raro. Donde até o mais provável é este cão ter apanhado raiva em Marrocos, a partir de um outro animal terrestre.

A raiva é uma doença de animais de sangue quente. Esquilos,  Rapozas, Guaxinins, Veados, Javalis, Linces, etc podem transmiti-la.

Uma ultima nota para finalizar: o cão de Toledo estava, de acordo com o livro apresentado pelo dono, vacinado.  Pode ser uma falha vacinal (há várias causas). Mas isso não deve ser motivo para duvidar da vantagem da vacinação. De um modo geral, foi a vacinação e a sua  aplicação em massa que nos tem permitido ter tão poucos casos. Este "post" é sobretudo com o objectivo de levar a vacinar o seu cão ou gato (se não o fez já) e compreenda porquê quando não se ouve quase falar de raiva (e porque continua a ser a única vacina obrigatória em cães). A vacina pode ter reações adversas mas compensa e as graves são raras.

Vá, toca a ir vacinar a bicharada toda, a correr!

Nota 1:
De qualquer modo, mesmo animais vacinados, precisam de cumprir determinadas regras quando entram e saiem de zonas de risco. Eu não sei muito mais pormenores, mas sei, pela notificação oficial, que essas regras não foram cumpridas no caso do cão de Toledo. Mas as investigações ainda estão em curso.

Nota2: Pode ser possível vacinar apenas de 3 em 3 anos se a vacina estiver aprovada para isso.



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(1) Li alguns relatos ao longo dos anos de situações deste género. Desculpem a evidência anedótica mas estou convencido que encontrarão as referencias se procurarem. Por falta de tempo não o fiz agora.

Bibliografia consultada (não obrigatoriamente imediatamente antes de escrever o post): Ettinger, Feldman, "Medicina Interna de Pequenos Animais" ed 2000; Larry Tilley, "5 minutes veterinary consult" ed digital 11.0.8 2009

Declaração de conflito de interesses: Tenho interesse profissional na vacinação de cães e gatos. 

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Assim nascem as lendas.

Um jornalista diz que o padre Bergoglio, como Jesus, multiplicou a comida. Lida a estória, não tem nada a ver com milagres ou multiplicações. Antes, redistribuições.

Mas agora imaginem outros tempos. Sem jornais, sem Internet, sem televisão e esta estória a ser contada e recontada acerca de tão carismática figura. E quem conta um conto...

E mesmo nos dias de hoje muito mito nasce assim. Crenças que são muito mais fáceis explicar através de erro humano do que através de justificações da sua veracidade e que assentam em estórinhas que alguém viu  ou ouviu.