Talvez a verdade seja algo inalcançável ao pensamento humano. Talvez, como dizem alguns filósofos, a verdade não exista. Talvez o mundo seja um engano, uma ilusão. Talvez vivamos todos dentro do universo da “matrix”. Talvez a verdade seja uma invenção humana, um conceito apenas consequente do pensamento humano, em que só existe verdade porque existem seres inteligentes para pensar sobre ela.
Seja como for, seja qual for a realidade em que se vive, tudo indica que tem regras; e que a realidade, tem pelo menos uma parcela inteligível, compreensível, a partir da qual se pode gerar conhecimento, fazer previsões, construir e planear, tudo coisas capazes de influenciar a nossa vida. E esse conhecimento corresponderá em certo modo, à verdade. Sendo a verdade a propriedade positiva de algo corresponder à realidade, no sentido mais completo e consistente que for permitido à mente humana alcançar.
A enciclopédia Britannica diz assim: (traduzido) “Verdade: Em filosofia, a propriedade de afirmações, pensamentos, ou preposições que são ditas, no discurso vulgar, de concordarem com os factos ou assertarem que esse é o caso.” (1) Depois continua dizendo que há quatro tipos principais de teorias da verdade que foram propostos.
Mas este texto não é sobre o conceito de verdade. Este é um blogue de ciência, não de filosofia, e a minha preocupação é apenas que seja claro o que escrevo. Pareceu-me no entanto relevante se ia falar sobre a verdade fazer uma pequena introdução ao conceito. Adiante:
A minha posição é simples. A verdade é importante. E é sobre isso de que se trata este "post".
Não é também sobre tolerância. Especificamente, a tolerância que devemos ter ou não ter em relação a crenças diferentes. Este ponto pode não ser muito claro, mas a explicação terá de ficar para mais tarde. Sumariamente: Tolerância - sim, é absolutamente necessária do ponto de vista social e pessoal. Substituir a verdade por qualquer crença imaginária em nome da tolerância - nem sequer é possível. Para já porque crenças há muitas e são incompatíveis umas com as outras.
Outro aparte que importa fazer, (e de que já tenho falado antes sobre diversas formas), usando uma expressão popular, é que não tenho, nem conheço quem tenha “a verdade no bolso”. Mas, mais uma vez, não é sobre isso que é o presente texto. Este é a apologia que tentar conhecer a realidade o mais possível e o melhor possível é importante.
Defender que a verdade é importante pode até parecer redundante. Pode parecer uma verdade auto-sustentada. Mas não é. Tenho visto que é possível construir um argumento acerca da validade de permitir (por "fechar os olhos") a crença de realidades imaginárias. Eu não estou de acordo.
Muitas crenças actuais criam sistemas conceptuais simples que confortam e apoiam as pessoas nas suas dificuldades do dia-a-dia. Na previsão do futuro, no tratamento das doenças, na aceitação da morte pessoal ou de entes queridos, na expectativa de riqueza, etc. De um modo geral aumentam a felicidade com base num sentimento de controlo ou protecção que é ilusório. O argumento hedonista, na minha opinião é fraco e por razões que vou tentar mostrar que são mais importantes. Mesmo sem argumentar que conhecer o mundo da melhor maneira possível e aceita-lo como ele é se pode traduzir directamente em bem estar (eu acho que sim e no fim cito Carl Sagan a este respeito), eu argumento que há coisas mais importantes que se sobrepõem ao argumento hedonista. Há muitas verdades que são dolorosas, inconvenientes, perturbadoras, preocupantes, etc, mas “meter a cabeça na areia” não é a solução. Porque a sensação de conforto é ilusória, a sensação de controlo é falsa, e as consequências podem ser lesivas para os outros ou para os próprios. Acreditar numa mentira é um caminho insustentável e fraco para o indivíduo e a sociedade. Seguir um caminho de procurar a verdade e encarar a realidade talvez requeira coragem, mas tem as suas compensações. É possível construir sobre a verdade.
Se aceitarmos que a mentira nos serve, estamos a abrir a porta à irracionalidade e à injustiça. A procura da verdade é importante porque é o garante da consistência do nosso mundo intelectual e cognitivo. Quero dizer, se a verdade não for importante e aceitarmos a mentira, então este mundo torna-se incompreensível. Não é possível construir conhecimento e tecnologia sobre a mentira porque ela é inconsistente. Só se for uma tecnologia inexistente, verdadeira apenas num universo paralelo, imaterial e inconsequente. Não é possível conhecer, porque o que se conhece é e não é, ou já foi, de acordo com os caprichos de cada um. O saber fica sinónimo de ignorância.
É possível lidar com a verdade, com a mentira não. A verdade é consistente, previsível, passível de ser estudada e compreendida (pelo menos até certo ponto). A mentira não. A mentira é mutável e imprevisível, variável conforme quem a produz e inconsistente. Resulta num mundo incontrolável e caótico. Se se aceitar a mentira, não pode haver justiça. Não pode haver ética. Porque qualquer um pode a qualquer momento inventar factos ou argumentos, sem que a sua validade seja importante.
Pode-se dizer que estes são argumentos consensuais e óbvios mas que não têm nada a ver com a argumentação contra as pseudociências e crendices variadas. Mas tem tudo a ver.
Porque a realidade é só uma e é o critério de verdade que interessa. Se vamos admitir umas mentiras e não outras, onde fica a linha divisória? Se muita gente acreditar em algo isso não torna esse algo necessariamente verdadeiro. Nem se muita gente acreditar que algo era bom que fosse verdade isso passa a ser verdade… E depois, pode-se vender uma mentira a alguém desde que essa pessoa pense que isso é verdade? Eu acho que não, porque se sim, então qual é a diferença entre vender a Lua e vender pozinhos mágicos?
E que justiça há entre uns terem de ser honestos e fazerem o melhor que podem nas suas áreas de trabalho e outros não; podem prever o futuro sem qualquer fundamento factual, apenas porque alguém acredita no processo? Porque pode um médico ser acusado de má prática quando falha, mas pode o praticante de uma qualquer medicina alternativa prometer o que não acontece? Que sentido faz tentar ensinar ciência nas escolas, se se aceita todo o lixo anti-cientifico como verdade?
Há quem argumente que algumas dessas crendices não fazem mal a ninguém. Mas eu acho que fazem. Inibem o sentido crítico e a vontade de conhecer. Resultam em confusão intelectual e em concepções enganosas do mundo. Resultam em prejuízos económicos pessoais e economias sem produção. Resultam em atrasos no tratamento de doenças, e efeitos adversos incontrolados. Resultam em manipulação de pessoas, na melhor das hipóteses não intencionalmente.
Porque não se há-de aceitar uma preocupação com a verdade e procurar quem tem provas daquilo que afirma, que baseia as suas decisões em estudos sistemáticos e fundamentados, que usa um conhecimento claro, público e acessível a qualquer um?
O ensino e a educação são das melhores ferramentas que se pode dar a alguém, tenho ouvido varias vezes. E estou de acordo. Aceitar que a verdade não é importante é ir contra a importância do ensino e ir contra a importância da ciência. É criar disfuncionalidades nessas ferramentas.
A verdade é importante no dia-a-dia, na vida, na sociedade e na ciência. Porque se não for, dificilmente algo mais é importante.
Para terminar:
"The world is so exquisite, with so much love and moral depth, that there is no reason to deceive ourselves with pretty stories for which there's little good evidence. Far better, it seems to me, in our vulnerability, is to look Death in the eye and to be grateful every day for the brief but magnificent opportunity that life provides."-- Carl Sagan, Billions and Billions, page 215
(1) “truth.” Enciclopaedia Britannica. 2008. Enciclopaedia Britannica 2006 CD. 25 Nov 2008
2 comentários:
Estou razoavelmente de acordo; no entanto, convém não esquecer que não há verdades absolutas. Apreendemos o mundo com o cérebro que herdámos da evolução - "não sabemos" o quão limitado ele é... basta ver que outros animais conseguem captar estímulos que nós não conseguimos.
Acresce que:
Sobre convicções
«(...)
Convicções são entidades mais perigosas que os demônios. E o problema é que não há exorcismo capaz de expulsá-las da cabeça onde se alojaram, pela simples razão de que elas se apresentam como dádivas dos deuses. Os recém-convertidos estão sempre convictos de que, finalmente, contemplaram a verdade. Daí a transformação por que passam: seus ouvidos, órgãos de audição, se atrofiam, enquanto as bocas, órgãos da fala, se agigantam. Quem está convicto da verdade não precisa escutar. Por que escutar? Somente prestam atenção nas opiniões dos outros, diferentes da própria, aqueles que não estão convictos de ser possuidores da verdade. Quem não está convicto está pronto a escutar - é um permanente aprendiz.
(...)
Dizia Nietzsche que "as convicções são piores inimigos da verdade que as mentiras". Estranho isso? Não. Absolutamente certo. Porque quem mente sabe que está mentindo, sabe que aquilo que está dizendo é um engano. Mas quem está convicto não se dá conta da própria bobeira. O convicto sempre pensa que sua bobeira é sabedoria.
As inquisições se fazem com pessoas convictas. (...)
Mas os demônios das convicções têm atributos dos deuses: são omnipresentes. Escorregam da religião. Emigram para a política. (...)
Nenhuma instituição está livre dos demônios das convicções. Nem mesmo a ciência.
(...)»
Rubem Alves
(In: O que é científico? Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2007, pp 45-47)
Cordialmente
Lourenço:
Obrigado pelo seu comentário. Penso que complementa o meu "post" positivamente.
Enviar um comentário