segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Crêr versus conhecer.

Acreditar, a palavra "acreditar", tem significados opostos em ciência e em crenças como "acreditar" em bruxas.

Concedo que superficialmente sejam a mesma coisa. Mas só superficialmente. Se ambos os significados se referem à identificação de algo como sendo verdade, as semelhanças acabam aí.

Porque um se refere a uma crença pessoal e o outro se refere àquilo que podemos provar que é universalmente verdade, usando os meios mais adequados possíveis para o fazer. Um "acreditar" é acreditar porque parece que sim, e o outro "acreditar" significa conhecer. A palavra é a mesma, mas os seus significados são tão distintos como isso - como acreditar simplesmente, é diferente de conhecer.

Crença na ciência, não é crença como em "crença em espíritos"

Se por exemplo um céptico acredita em ciência, não é por ter uma memória enciclopédica de todo o conhecimento cientifico. É porque conhece o que significa uma afirmação cientifica. Porque sabe o trabalho sistemático e aberto a critica que está por traz. É dai que parte a crença. Na crendice, a própria crença é a base do conhecimento. É óbvio que uma pessoa não pode verificar todas as evidencias experimentais que corroboram uma teoria, é preciso acreditar que quem o fez foi honesto (pelo menos durante os primeiros tempos após uma publicação). Mas isso é longe de ser algo baseado na crença simples. Essa crença é apoiada em conhecimento. De que determinada coisa foi obtida através do melhor meio possível de obter conhecimento que chegou à humanidade. E existem meios para se por isso em causa. E é posto em causa! As mentiras mais tarde ou mais cedo são descobertas.

Pôr esse tipo de crença articulada e inteligente ao nível de uma "crença pela crença" (ou ao nível do conhecimento baseado na crença), em que a ordem do processo cognitivo é inversa, é um disparate. Não são exactamente a mesma coisa.

Se me disserem que é preciso pelo menos acreditar em alguns pressupostos (para fazer ciência), pois claro que é, mas são muito simples. São pressupostos tão básicos que se forem falsos, nenhuma outra forma de conhecimento é possível. Pressupostos com acreditar que a realidade existe e que é inteligível. Se há uma crença em ciência é a de que a realidade pode ser explicada. Mas se não pode ser explicada, isso afecta qualquer outra forma de pensamento que faça qualquer tipo de afirmações. Porque se o real não existe ou é incompreensivel, não há maneira de validar afirmações. Sejam elas quais forem. É como aceitar que é verdade que a verdade não existe. Não leva a lado nenhum.

Por outro lado se o que se poe em causa é a confirmação das afirmações e saber se determinado estudo existe ou não, se é fraude ou não, isso também é absurdo quando feita a acusação de um modo generalizado. Porque para alem de existirem estudos falsos, e maus artigos, e "peer review" insuficiente, a regra é que o processo de auto-questionamento da ciência os encontre. Acreditar que a ciência só é autocrítica na nossa própria área de conhecimento é ilógico.

Também podemos sempre ver o ranking da revista em que foi publicado, se teve "peer-review", seguir as citações para ver os pressupostos em que o artigo se baseia, ler sobre as críticas que tenham sido publicadas (há sempre ou quase), ver como os autores conseguiram fazer o estudo (que meios tiveram, quem pagou, quem orientou, que interesses têm) etc. Em resumo, podemos em pouco tempo verificar se está a ser feita ciencia ou não. Mesmo que não consigamos perceber nada sobre o que estamos a ler, acreditar numa conclusão de um artigo cientifico porque podemos confirmar que foram cientistas a fazer ciencia, é uma constatação de que o conhecimento em causa é científico. É diferente de acreditar numa afirmação que nós não sabemos que processo cognitivo lhe deu origem, ou que sabemos não ter origem em investigação sistematica e metódica. Mais uma vez, este "acreditar" é mais "conhecer" ou "aprender".

E depois, existe outra coisa, que é a articulação do que está em causa, dessa afirmação hipotetica que queremos validar, com as coisas que nós conhecemos cientificamente em primeira mão. A ciência articula os seus conhecimentos como se fosse um puzzle da realidade. E a realidade, se pudémos aprender alguma coisa, é só uma.

Este texto todo é para dizer que crença em ciência tem um significado totalmente diferente de crença em outra coisa. É mesmo o inverso. Uma é acreditar porque existem evidencias e depois raciocínio que o suporta - outra é fazer o raciocínio e procurar as evidencias porque temos a crença. Não é a mesma coisa. E a confusão é perigosa.Quanto às dissonancias na ciência, existem claro, é a natureza do bicho, mas não são assim tão graves. É deixar para os especialistas em cada matéria a afinação das coisas mais complicadas. Não serve para invalidar a ciencia como o corpo de conhecimentos mais consistente que a humanidade tem. É um exagero falacioso esta linha de argumentação. Tipo argumento das lacunas. Pelas razões ja exploradas anteriormente.

Este "post" segue a linha iniciada em "Fé em ciência":

http://cronicadaciencia.blogspot.com/2009/09/fe-em-ciencia.html

A minha defesa do consenso cientifico, que aqui faço implicitamente, descrevi-a com exaustão aqui:

http://cronicadaciencia.blogspot.com/search/label/consenso%20cient%C3%ADfico

1 comentário:

THEORIKÓNDOXAS disse...

É... sempre querem reduzir tudo à crença na origem. Mas a crença religiosa é estacionária exatemnte na formação primária da percepção, a Ciência percorre um árduo e longo "caminho" (método)até que a crença coincida com a derrisão das possibilidades na demostração da causa-objetiva- eles querem com que essas duas perspectivas, tão distintas se equivalham apenas porque, em última análise, reduzem-se`ao veredicto do Sujeito que confere valor de Verdade ao juízo - o q é absurdo, pra ñ dizer cínico!Pois, como vc bem o disse, a Ciência quer demonstrar o que é objetivo, universal e necessário: seu arbítrio deve ser identico ao que se suscita derrisoriamente na relação objetiva estudada. Também relacionam a imoralidade ou carência ética à postura cética, confundindo-a com cinismo ou niilismo, embora o ceticismo possa até descambar por aí mesmo. A dúvida do cético é metódica: sabe-se que o valor é relativo e desnecessário, mas nem por isso abdica-se definitivamente de instituir um referencial social estável, mesmo q por convenção.Nessa perspectiva nós céticos contribuímos para o melhoramento social, sobretudo porque nossa dúvida não obstante acaba por desmascarar a sofística e a razão-cínica travestidas nas ideologias.Não abdicamos de todos e quaisquer referenciais como os niilistas, nem usamos de modelos vários subrepticiamente, ora sim ora não, feito os cínicos contemporaneos, questionamos aquilo que dá sinais, ainda q mínimos, de problema e precariedade numa determinada formação sistêmica, sobretudo social.

Fellipe Knopp