terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A cor somos nós.

"Transformar os processos em coisas é um mero artefacto da nossa necessidade de transmitir aos outros, de um modo rápido e eficaz, conceitos muito complicados."

António Damásio in "Livro da Consciencia"

O mundo de Maria (de Jackson):

Outro argumento repetido a favor do dualismo (dissociação mente/matéria (1)) é o da cientista que vive num mundo a preto e branco (2). Chamemos-lhe Maria. 

Maria trabalha num laboratório a preto e branco, de onde nunca sai. Lá investiga o ser humano e descobre tudo o que há para saber sobre o que se passa dentro do ser humano quando ele tem uma experiencia de uma cor. Qualquer cor. 

Um dia um indivíduo do exterior atira-lhe para cima uma bola vermelha e ela tem uma experiência que nunca tinha tido antes. Tem a experiencia do vermelho. Na primeira pessoa pela primeira vez. Ela aprende algo de novo, que é como é realmente ver a cor vermelha.

Diz a argumentação que se Maria já sabia tudo o que havia a saber sobre o vermelho em termos físicos então há pelo menos uma coisa que ela não sabia e logo não pode ser um facto físico.
Eu discordo que isto seja um argumento a favor do dualismo.
A cor é uma propriedade da mente. Não do objecto. A propriedade do objecto são as frequencias que reflecte.  A cor é a disposição dos padrões mentais causados pela percepção do objecto.

É precisamente por a sensação de cor corresponder a um estado mental, no mundo físico, que não é possível saber como é a cor na primeira pessoa, sem experimentar esse estado mental pessoalmente. Para estado mental estou a referir-me a um padrão de activação de neurónios. 

Maria não sabe tudo sobre o mundo físico dentro do cérebro, pois não há maneira de comunicar como é sentir a cor sem que se activem os neurónios correctos. Ela sabe quais são os que tem de activar e até pode especular como o poderia fazer com implantes de micro eléctrodos. Mas esse bocado de informação que falta não é passível de ser descrito em outra linguagem a não ser a sináptica. Ou uma que a desencadeie. Ela sabe o que se passa no cérebro de quem vê cor e sabe o que se passaria no seu. Mas o ultimo bocado de informação é mais fácil de explicar com a velha definição: “Olha, é isto”. 

E precisamente por isso sabe que só vai ver cor se replicar no seu cérebro aquele padrão. E tal não acontece apenas por ela saber o mapa do padrão neural. Tal como nós não somos pedra se soubermos tudo sobre uma pedra e tal como nos nunca seremos o território por melhor mapa que construamos.

O processo não é a coisa. A descrição estática não é o acontecimento. Experimentar a cor é o acontecimento. É o território, e a descrição é o mapa. E o mapa não é o território.

O que é que a minha defesa prevê? Que se não houver esse circuito ou complexo de circuitos que não se possa experienciar cor. Prevê que esse aparato neuronal seja igual em todas as pessoas – tem de ser inequívoco com a experiencia. E que se esse circuito for estimulado nós de facto possamos experienciar cor mesmo na ausência de um objecto colorido. 

E isto é o que a ciência sugere que se passa. O padrão neuronal é a cor. Sem ele não há cor. Pessoas com lesões na região occipito-temporal não são sequer capazes de imaginar cor (3), muito menos de a ver. Não só não vêm cor como todo o seu imaginário passou a ser a preto e branco. Perdem a memória da cor, não sendo capaz sequer de invocar esse padrão neuronal. Por outro lado, nem preciso de falar em alucinações para mostrar que a recriação do padrão neuronal com ou sem objecto leva a experimentar cor. Basta chamar a depor. A memória.

Em resumo, nós somos o corpo. Sem sermos ou termos esse padrão neural em nós não podemos “ser” a cor. Sentir a cor é isso. A cor é um padrão neuronal que existe para reconhecer determinadas frequências de luz. Não há cor sem o padrão. Podemos saber como é o padrão nos outros perfeitamente. Podemos ter o mapa. Mas para saber como é em nós, ser o território… Então temos mesmo de ser o território. O cérebro e esses padrões de circuitos sinápticos somos nós. Integrados uns nos outros e reverberando pelo encefalo e corpo.

Há muito por saber? Sim.

Argumento contra o materialismo? Nope. Isto é exactamente o que é de esperar se a cor for uma propriedade do cérebro, por assim dizer. Só damos essa propriedade ao cérebro replicando-a no cérebro. Só experimentamos a cor se… Experimentarmos a cor! A cor somos nós. Não só mas também.


(2)    Argumento do filósofo Frank Jackson. Conheci este argumento no livro do Dennet “consciousness explained” e sumarizei esta versão a partir do  guia de filosofia de Stephen Law editado pela Dorling Kindersley
(3)    “O livro da consciência” de António Damásio, pag 190 da versão portuguesa. A minha opinião é baseada no que está desenvolvido acerca de Zonas de Convergencia-Divergencia e que culmina com a apresentação de evidencia baseada na experiencia da cor!

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