sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Propriedades emergentes e a mente.

Ando para escrever este post desde que iniciei este blogue. Mas fui sempre deixando para outra altura, porque queria sempre ler mais sobre o assunto, e havia sempre qualquer outra coisa a desviar-me a atenção. É a diferença de escrever por gosto e não por obrigação. Vou-me desviando de planos e deixando-me ir para onde me apetece mais.

Mas estão sempre aparecer questões em que a emergência é a melhor explicação. Só quero dar uma ideia. Antes de abordar a mente.

Um fenómeno emergente é um efeito de um sistema que não pode ser atribuído ao funcionamento em separado dos componentes desse sistema. Não será correcto dizer que o todo é maior que a soma das partes porque não estamos a falar de quantidades mas de qualidades. E é a soma das partes que faz emergir os fenómenos. A questão é que não é uma soma aritmética, mas uma somadas funções e interacções entre elas.

Por exemplo, um ser vivo como o mamífero não pode ser explicado como o conjunto de células que o formam. Pois se o coração para e ele morrer, essas células ainda la estarão todas. A diferença é o que elas estão a fazer. E como interagem entre si. A vida é a propriedade que emerge dos fenómenos celulares em que cada célula cumpre a sua função. Se separarmos as células e não as pusermos a interagir perdemos a vida. Na realidade, o que as células fazem para ter vida é manterem-se todas e o seu ambiente num equilíbrio muito preciso, a homeostasia.

Um exemplo que já dei antes neste blogue, num curto comentário a um texto de Douglas Hofstadter (ver teorema de Godel) é o das proteínas. As propriedades destas, quer estruturais quer catalíticas, emergem da forma destas e dos locais onde ficam os centros activos. Se dispusermos os aminoácidos que as compõem em filinha não temos actividade proteica. Temos de esperar que se enrole. As propriedades na proteína enrolada não estão nem em princípio na sua forma desenrolada. Porque ao enrolar-se, os aminoácidos vão colocar-se de modo que o seu resultado é o resultado da interferência e das reacções das suas propriedades enquanto ela se enrola. De tal modo difícil de prever que a melhor maneira que se arranjou foi simular a proteína a enrolar-se.

Um formigueiro também é um bom exemplo de emergência. Quase podemos considerar o formigueiro como o animal e não um conjunto de animais. Aquilo que é o formigueiro emerge da interacção de milhares de formigas e explicar o resultado do seu funcionamento é muito difícil se formos para ao nível individual.

Durante muitos anos a vida era atribuída a um sopro vital ou coisa do género. Pensava-se que não podia haver uma explicação para a vida que fosse "materialista". Hoje, conhecemos tão bem todos os passos, funções e interacções que já não se pensa na vida como algo que não esta ao alcance de ser explicado com base nas propriedades da matéria se considerarmos que as interacções  e o funcionamento, o que estão a fazer, são o mais importante.

A propósito, este caso passasse hoje com a mente e o cérebro. Muitos, normalmente crentes religiosos, acham que a mente não pode ser explicado pelos neurónios. Mas ao contrário, a maioria dos neurologistas pensam que sim. Ainda há muito para saber, mas tudo aponta que tal como a vida é mais que as células que a criam também a mente é mais que o cérebro. Mas sem nada de místico. A mente é o resultado que emerge da interacção de milhares de  sinapses por milímetro cúbico que o cérebro tem. Tal como as proteínas e o formigueiro, a descrição a um baixo nível, isto é, como soma simples de neurónios, não é possível. Mas se considerarmos que há milhares de circuitos, todos ligados uns aos outros e ao corpo, e que se criam registos e processos, e depois registos e processos sobre os registos e processos e que ainda se criam mais registos e processos sobre os registos e processos, até que lhes percamos a conta, já começamos a ter um vislumbre de uma consciência.

Como em. Eu sinto. Eu sei que sinto. Eu posso pensar sobre saber que sinto. E pensar sobre o facto de pensar que sei que sinto. Na realidade a nossa consciência é uma autoconsciência. Do fluxo de sensações que atravessava o cérebro primitivo dos nossos antepassados, nos fomos criando novos sistemas por cima, e fazendo ajustes nos que vão ficando por baixo, mas mantendo tudo a comunicar. E os sistemas mais evoluídos, as ultimas partes a desenvolverem-se com o neocortex, parecem ter todas as propriedades de serem capazes elas próprias de simularem outros sistemas acima. Ou seja, têm uma plasticidade e versatilidade tal que podem por uma parte de si a funcionar para imitar um outro sistema.

De um modo análogo ao computador que tem varias máquinas (por exemplo dois sistemas operativos) virtuais num único hardware.

Conseguimos criar imagens de nós próprios, construir planos para o futuro, testar cenários, etc.
E tudo em tempo real, interagindo umas coisas com as outras, controlado por uma corrente principal - o nosso pensamento consciente.

Sabe-se há muito tempo que o cérebro vai processando várias coisas ao mesmo tempo, tal como o nosso corpo vai fazendo varias coisas ao mesmo tempo. Ao contrário,  a maioria dos computadores de secretaria ainda são apenas sequenciais, isto é, cumprem uma ordem de cada vez. Processam uma coisa de cada vez. O cérebro não. Tal como seria de esperar em algo que permite a emergência de propriedades, há muita coisa a acontecer ao mesmo tempo. Aquela história dos 10% é um mito como o do nariz do cão estar seco. Naturalmente que a todo o vapor também não esta todo ao mesmo tempo. Se não também não conseguíamos ver que zonas é são activadas por determinadas situações.

Mas é este interagir de sistemas sobre sistemas, formados por neurónios, que se pensa hoje que é a mente.

A destruição acidental ou patológica de muitas áreas do cérebro tem permitido saber mais ou menos para que é que cada área serve particularmente. Outras coisas têm se sabido através da tomografia por emissão de positrões. Mas nada leva a crer, no conhecimento actual, que vamos precisar de trazer alguma energia sobrenatural ou entidade mística para descrever a mente.

Não está ainda de facto tão bem esclarecido como o processo a que chamamos vida. Isso é verdade. No caso da vida, para onde quer que olhemos somos capazes já de dizer o que é que aquela célula esta a fazer e porque. No caso dos neurónios não. A sinapse é a unidade básica do pensamento, é como um interruptor especial nos circuitos. Mas são milhares de interruptores por circuito, e milhares de circuitos, todos ligados uns aos outros e ao corpo e alguns ainda ao exterior. Produzem químicos, criam potenciais eléctricos e são microscópicos. E em vez de ser num plano, como numa placa de computador, é num volume a 3D. É a confusão total para saber o que se esta a passar a cada milímetro cúbico e no geral.

Mas que são aquilo que nós somos são. Destruam alguns e haverá consequências. Consequências naquilo que nós somos. A personalidade e a inteligência mudam.

Agora, descrever  o cérebro a partir do neurónio é como descrever uma musica a partir da sequência de zeros e uns do CD. É preciso por a coisa a funcionar para saber realmente como é. Ou então emular o processo. Por apenas soma das partes não chegamos la.

PS: as ideias aqui exprimidas são um apanhado de vários livro que incluem o "conscienciousness explained" do Dennett e o "Sentimento de Si" do neurologista português António Damásio. Para quem tiver tempo, claro que aconselho uma leitura do GEB do Douglas Horfstadter. É um livro sobre inteligência artificial, sobre consciência e sobre a mente, que esta preocupado em explicar da maneira mais lenta (mas mais divertida) cada pormenor implicado nestes assuntos. Poderá no entanto acabar o livro com a sensação que está mais inteligente que antes, mas que ainda sabe menos o que isso significa do que quando começou. :)

3 comentários:

alfredo dinis disse...

Caro João,

Nada tenho a opor ao que diz sobre a mente como propriedade emergente da actividade neuronal.

Neurocientistas como Damásio (numa entrevista) e Kristoph Koch (na obra The Quest for Consciounsness) afirmam que as neurociências não implicam a impossibilidade de acreditar em Deus. Koch vai ainda mais longe, e aceita a possibilidade da imortalidade humana.

Cordiais saudações,

Alfredo Dinis

João disse...

Alfredo Dinis:

Naturalmente que uma das areas que ainda tem mais por saber não pode implicar que deus não existe.

Mas o que ja se sabe sugere fortemente que deus não tem intervenção no processo.

E no contexto de toda a ciencia humana, não apenas das neurociencias, esta conclusão torna acreditar em deus um acto de fé e não uma escolha racional.

Um cientista pode acreditar em deus porque ninguem o proibe.

Mas deus não apresentar nenhuma distinção da sua existencia em nada do que se conhece significa que a suposição da sua existencia é uma hipotese mais fraca. Tão mais fraca quanto mais nós soubermos e mais deus se disser omnipresente, justo, etc.

Não ha intencionalidade no universo é a prova que não há deus.

A unica intencionalidade que se encontra é a de origem natural, biologica e está quase resumida à especie humana.

Se deus não tem intencionalidade por mim tudo bem, ele existe. Mas não é nada omnipotente ou bom ou justo. É o cosmos e pronto. Inerte do ponto de vista emocional.

João disse...

Cientistas que acreditam em deus seguem este raciocinio mas chegam a conclusões diferentes.

Nomeadamente o "Fine Tuning" aparece-lhes como evidencia de intenção no universo.

Mas para uma maioria isso é um erro de interpretação e de ponto de vista.