Depois de escrever o meu post sobre a tourada em que incluí parágrafos sobre as reacções do touro na arena, descobri inúmeros comentários relativos a um estudo que dizia que os touros não sentem dor ou que não sofrem na tourada.
O numero de animais variava, os métodos variavam e as conclusões também e era importante encontrar a versão "oficial". Tudo o que encontrei foi este estudo, editado pela própria Faculdade do autor:
"Regulação neuro-endocrina do stress e da dor no touro de lide (BOS TAURUS L.). Um estudo preliminar"(1), por Carlos Ileria
E começa assim:
"O gado bravo possui uma série de peculiaridades que fazem com que seja praticamente impossível a sua comparação com outras espécies ou raças de animais."
Uma afirmação extraordinária não? Nada frequente em ciência. Mas podemos aceitar uma certa liberdade semântica dentro de um contexto que o justifique, por isso vamos continuar.
O estudo diz que é preliminar logo no titulo. E isso nota-se que é, por razões que direi mais à frente. Quer dizer que o estudo não serve para tirar conclusões definitivas, mas deveria servir para justificar mais estudos e mais pesquisa. Ou pelo menos devia ser esse o significado de preliminar. Parece-me estranho que mais à frente se tirem mais conclusões extraordinárias. Embora em nenhum lado diga que o touro não sofre. Isso, o estudo tem a razoabilidade de não dizer.
Mas devo dizer desde já que eu espero que aqueles resultados sejam verdadeiros, porque longe de mostrar que não há sofrimento brutal na tourada, sempre mostra que o touro pode ter alguma coisa a seu favor para aguentar melhor (que outra raça) que lhe espetem uma farpa nas costas (e a girem para "castigar") e lhe partam vértebras, rompam músculos, cortem nervos, etc. Para bem dos touros espero que alguma coisa aqui seja verdade. Agora que há sofrimento e que o espectáculo é uma barbárie, este estudo não põe em causa. Pelo contrário, eu penso que mostra o tipo de dor que esta em causa, embora sugira que o touro possa de facto, pela sua atitude, conseguir tolerar o stress. Tudo junto é uma barbaridade de qualquer maneira.
Adiante, vamos aos pormenores:
O estudo mede o cortisol, uma hormona do stress, em três situações: Durante a lide, o transporte e uma corrida de touros. E mede também a ACTH e as beta-endorfinas. A ACTH é a hormona produzida na hipófise para levar a adrenal a produzir corticoides (cortisol) e as beta-endorfinas são moderadores da dor. Estas endorfinas opioides naturais que reduzem a sensação de dor - mas não a eliminam. Tanto que relativamente aos animas e humanos também, uma situação em que há muita beta-endorfina em circulação é no parto e é de notar que as mulheres queixam-se de dores na mesma - na realidade é o topo da escala de dor! Com endorfinas incluídas.
Quanto ACTH e Cortisol. Ele usa-os como uma medida do stress. Tudo bem E conclui que:
"a primeira coisa que reparamos é que o touro é um animal especial endocrinologicamente falando já que tem uma resposta totalmente diferente de todas as outras espécies de gado e espécies animais".
Bem, esquecendo a linguagem, estranhamente cheia de liberdades semânticas (mais uma vez), eu penso que aqui poderá haver alguma verdade. Vale a pena prosseguir mais estudos para confirmar ou refutar isto. Parece haver de facto uma diferença significativa entre o cortisol libertado no transporte - uma situação extremamente stressante para os animais, já muito debatida e conhecida - e a lide. Era de esperar que os valores fossem bastante mais próximos. Além disso, há uma explicação plausível. O touro pode ter a determinada altura a ilusão que tem alguma coisa que pode fazer acerca da situação. A impotência é uma causa de stress. E a postura agressiva está associada a menos libertação de cortisol. Talvez pela mesma razão de aparentemente haver alguma coisa que o touro possa fazer, como dar umas marradas para se vingar. É estúpido, mas pode ser a perspectiva dele. É algo que ajuda, tal como dar um cinto para trincar aos soldados a quem se vai cortar uma perna, ou dizer uns palavrões para descomprimir. Mas a diferença para o transporte, em que a impotência é aparentemente maior é muito grande. Por isso, é de admitir que haja de facto um stress menor na lide que no transporte, ou pelo menos um stress menos debilitante.
No entanto precisamos de confirmar isto melhor. É preciso experimentar outras raças na lide - a ideia não me agrada mas seria a única ideia de poder comparar o touro de lide com outras raças a este respeito, sem isso o autor não pode concluir cientificamente que o touro de lide é assim tão especial. Por mim a tourada acabava na mesma, mas eu encontrei estudos que mostram que a variabilidade da libertação de cortisol, por causa de uma cirurgia, nas raças "normais", é muito variável de animal para animal. Na realidade se se escolhessem os casos individuais menos reactivos poderíamos conseguir artificialmente e desonestamente o mesmo efeito que há no estudo de Ilera. Isto não mostra que há desonestidade no trabalho de Ilera, mostra sim que o efeito esta dentro da variabilidade natural. Que não há nada de realmente novo que pode ser explicado apenas por selecção de genes que já existem nas outras raças, não havendo na raça brava algo mais que uma afinação para reagir melhor ao cortisol. Algo que se pode conseguir até com treino físico apenas.
Faltam também resultados de medições mais seriadas. Antes da lide, durante e imediatamente após pelo menos. Falta dizer a que horas do dia. (o cortisol tem um ritmo circadiano). Falta dizer quanto tempo depois da colheita foi feita analise. Como foi o sangue conservado? E em relação ao transporte a mesma coisa. Muito importante era saber quanto tempo de transporte houve antes de se colher o cortisol, alem da hora do dia, etc.
O autor diz que não é possível ter um controle cientifico porque não se conseguem ter amostras de cortisol basal. Todo o acto de medir, picar, influencia o resultado. Isto é verdade. Há sempre stress envolvido na colheita com os métodos actuais. Mas mesmo assim, uma pesquisa pela Internet levou-me a imensas tentativas de encontrar esse valor para a espécie bovina e os valores andam entre as 3 e 10 ng /ml quando os animais estão calmos e em ambientes neutros. Parece que no campo, apanha-los para medir da origem a valores um pouco mais altos, mas não muito mais. Um estudo refere 15ng/ml (ou mg/L). Se o touro de lide tiver valores tão baixos então a lide representa um aumento de duas vezes o valor de repouso. Isso é stress. Se o touro de lide tiver já de si valores anormalmente altos, então sabe-se que isso esta associado a respostas menores de cortisol, tal como está a doença ou a depressão. Não parece ser o caso por causa da resposta de cortisol no transporte, por isso eu penso que vamos encontrar valores semi-basais (há sempre stress) entre os tais 3 e 10 ng/ml.
E a conclusão é de que há stress. Não que não há stress. E nada que seja tão extraordinário que permita concluir que o touro esta com menos stress que uma gazela que acabou de conseguir puxar a pata de dentro da boca do leão. Que a ansiedade causada pelo transporte é uma tensão brutal já é bem conhecido. Abaixo esta um estudo que mostra por exemplo que pilotos de aviões militares em missão quase não stressam quando comparados com o estado em que segue a tripulação do mesmo avião.
Agora as endorfinas.
Aqui é que eu acho que o estudo cai completamente por agua abaixo. Muitas endorfinas quer dizer muita dor. Se a quantidade de endorfinas é tão estupidamente alta, é porque a dor é estupidamente alta. Experimentem ir dizer a uma mulher que o parto não dói por causa das enforfinas. Depois do parto, se for natural, vão ouvir umas bonitas. Assumir que aquele nível de endorfinas é capaz de eliminar a dor é um exagero. Um exagero que o autor reconhece no fim do estudo quando diz que é preciso fazer outros exames. Agora, que aponta para uma redução da dor é um facto. Mas quanto dói ter as vértebras a serem estilhaçadas com a bandarilha espetada e que fracção disso é eliminada pelas endorfinas? Não é total. O Touro tem outras manifestações que sugerem que haja dor. Tal como a tentativa raivosa de vingança após levar com a estocada. Talvez a farpa não doa tanto ao touro como uma farpa espetada nas nossas costas. Talvez seja só como se fossem pregos e não farpas. E em vez de doer como grandes músculos a rasgar e vértebras a partir doa só como se fossem menos vértebras a partir e menos músculos a rasgar. E o que é que isto quer dizer?
Outra coisa que dá origem a elevações acentuadas das endorfinas é o acido láctico. O tal da dor de burro, com origem no metabolismo anaeróbio durante o exercício físico. E esse é tão elevado na lide que o touro entra em acidose metabólica.
Uma mulher em parto (sem preparação ou analgésicos) chega aos 65pg/ml de beta endorfinas(2). O touro bravo chega neste estudo aos 17pg/ml. Tive de confirmar as unidades várias vezes para ver que era verdade.. Torna a afirmação do estudo: "chega o momento em que deixa de sentir dor" absolutamente extraordinária.
E afirmações extraordinárias requerem evidências extraordinárias.
Coisas que o autor parece afinal, no fim do estudo lembrar-se. Relembra que é um estudo preliminar e que faziam falta ressonâncias magnéticas funcionais para comprovar a sua tese.
Sim, isso e aumentar o rigor deste trabalho.
Até lá, não há aqui nada que sugira que não há sofrimento e muito na tourada. Pelo contrário, há sinais que a destruição de tecidos e a estimulação de receptores de dor é muito grande.
Além do mais sabemos que altos níveis de endorfina levam a alteração do estado de consciência. O que levariam a uma aspecto sedado do touro. Coisa que parece não acontecer.
Se se mostrar que o touro na tourada não tem dor NENHUMA, para lá da dúvida razoável, eu penso que isso de facto será um argumento de força para os aficionados. E um que eu até espero que seja verdade, uma vez que me parece não posso fazer muito para acabar com ela. Mas a tourada inclui o transporte por exemplo. A não ser que passemos a criar o touro na arena. O autor apenas mostra mais um aspecto que causa sofrimento desnecessário associados à tourada.
Mas se não houvesse dor era sem dúvida melhor.
Mas estamos longe de poder tirar tal conclusão. Com a maior das honestidades. Quando isso for um facto penso que se devem rever os argumentos a favor e contra a tourada. Não creio de modo algum que tenha chegado esse momento.
Notas:
Não me apetece ter o trabalho de ordenar as citações de acordo com os estudos. No entanto estão referenciados dois estudos directamente pela relevância. São todos pertinentes, e deixei notas sobre o que dizem, pois faz parte da maneira como eu colecciono artigos para depois fazer os textos. Está lá tudo.
Valores normais são entre 3 e 10 mg/ml.Podemos ver a enorme variação na reposta de cortisol entre os vários animais e como alguns reagem mais à cirurgia que o touro bravo na lide e outros menos à cirurgia que o touro bravo na lide:
http://vfu-www.vfu.cz/acta-vet/vol74/74-037.pdf
A refutação por outro colega meu, que salienta alguns pontos de modo diferente:
http://sites.google.com/a/avatau.com/www/elsufrimientodeltoroenlalidia
(1) - REGULACIÓN NEUROENDOCRINA DEL ESTRÉS Y DOLOR EN EL TORO DE
LIDIA (BOS TAURUS L.): ESTUDIO PRELIMINAR - http://revistas.ucm.es/vet/19882688/articulos/RCCV0707330001A.PDF
Estudo sobre a quantidade de cortisol libertado de acordo com a personalidade:
http://www.nature.com/npp/journal/v31/n7/full/1301012a.html
Homens treinados libertam menos cortisol:
http://www.psych.nyu.edu/phelpslab/papers/07_Psychoneuro_V32.pdf
alterações ao nível da bioquímica sanguínea:
http://revistaveterinaria.fmvz.unam.mx/fmvz/revvetmex/a1998/rvmv29n4/rvm29410.pdf
Atitudes mais agressivas podem libertar menos cortisol:
http://www.sciencedirect.com/science?_ob=ArticleURL&_udi=B6T0P-47XN26S-47&_user=10&_coverDate=06%2F30%2F1990&_rdoc=1&_fmt=high&_orig=search&_origin=search&_sort=d&_docanchor=&view=c&_searchStrId=1463087442&_rerunOrigin=google&_acct=C000050221&_version=1&_urlVersion=0&_userid=10&md5=afee6a9284b9169508d8fc1199ce48b8
animais doentes secretam menos cortisol:
http://www.actavetscand.com/content/52/1/31
Os pilotos stressam menos que os outros membros da tripulação:
http://www.psychosomaticmedicine.org/cgi/content/abstract/47/4/333
Níveis de betaendorfinas ante e post-mortem em matadouro com pistola de estilete (notar que a morte é sem dor):
http://www.aspajournal.it/index.php/ijas/article/viewFile/ijas.2007.1s.457/1473
(2) Níveis de beta-endorfinas no parto na espécie humana:
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/2932121
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