Como não sou muito susceptivel a apelos à autoridade, nunca dei muita importancia ao argumento de que a O.M.S. recomenda a acupunctura. As evidências cientificas e a discussão da metodologia que lhes é subjacente é sempre o ponto onde me procuro focar.
Claro que é preciso recorrer a autoridades numa questão de utilidade prática, (sem dúvida, ninguém tem tempo para estar a rever a bibliografia toda para tudo e/ou a estudar todas as areas a fundo para o poder fazer com segurança) mas isso não quer dizer que seja um argumento bom contra factos, ao tentar estabelecer o que é conhecimento e o que não é de apelar para a autoridade. Foi esse o erro do Aristotelismo da idade média. E de muitas outras coisas ainda nos dias de hoje...
Mas a Organisação Mundial de Saúde devia fazer melhor. Dado a falta relativa de evidências que há a favor desta prática pré-cientifica, e como é um argumento que cada vez aparece mais (talvez porque a apresentação de estudos cegos, randomizados, bem concebidos, com amostras significativas e resultados estatisticamente válidos para efeitos clinicos notáveis seja mais dificil), fui investigar o que realmente tem a O.M.S. a favor da acupunctura.
E o que encontrei sugere a incompetencia da referida organisação em lidar com pseudociencia.
O que eles têm a favor da acupunctura é este trabalho de revisão.
Salta logo à vista na primeira linha da introdução um estranho apelo à antiguidade misturado com um implicito apelo à popularidade: "Nos seus 2500 anos de desenvolvimento, uma experiencia rica foi acumulada na area da acupunctura, atestando à quantidade de doenças que podem ser efectivamente tratadas com esta abordagem". Mau começo.
Não vejo outra maneira de interpretar isto senão como um disclamer de "bias". É como gritar a plenos pulmões: " Eu fui fazer esta revisão bibliográfica, mas é óbvio que já sabia as conclusões a que teria de chegar à partida, afinal não podemos estar todos enganados desde há 2500 anos, certo?"
Afinal quem é que a O.M.S. arranjou para fazer este trabalho? Nao é um ataque à pessoa do autor, mas esta introdução torna imediatamente a questão da parcialidade relevante.
Não é a antiguidade da crença que a eleva a conhecimento. Nem a popularidade. É errado começar por aí. Mesmo que se tenha a honestidade de o dizer. Por isso não estranhei quando verifiquei quem era o autor principal:
Zhang Xiaorui começou a sua prática clinica como "médica pé descalço", que são na prática trabalhadores da saúde básicos, criados pelo regime de Mao, com formação inferior à dos médicos mas necessários na sua falta (pois estes não queriam ir para o campo). Tinham a indicação explicita de misturar a medicina ocidental com a oriental, já que não havia meios "ocidentais" que chegassem para todos. Ela veio mais tarde a concluir o curso em medicina tradicional chinesa (agora a coisa a sério) na Universidade de Pequim. Pessoalmente pode ser uma excelente pessoa, mas é de esperar uma enorme parcialidade. É como incubir um hindu de produzir um relatório que diga ao resto do mundo se Shiva existe ou não.
Em resumo, o que a O.M.S. fez foi ir perguntar aos chineses, que vivem num país de pouca liberdade de expressão, se uma prática re-introduzida no país por Mao e segundo as indicações de Mao (era proibida por ser charlatanismo antes disso) é boa ou não.
Isto não é caso para um momento WTF? Não? Talvez na altura não se pudesse fazer melhor. Tenho dúvidas, mas adiante.
Vejo depois que os estudos usados na revisão são todos anteriores a 1999. Isso é um problema importante. A acupunctura é notoriamente dificil de ser estudada por ensaios cegos e a metodologia envolvida tem evoluido muito. São os estudos mais recentes (muito mais que 1999) que quando selecionados por rigor e não por outra coisa qualquer, mostram que a acupunctura só tem significado para condições "amigas" do placebo. Por um lado. Por outro lado, pura e simplesmente há muito mais estudos, feitos em várias partes do mundo, e a verificação indenpendente é parte da ciencia.
Também não é feita uma meta-análise rigorosa e bem descrita, quer seja acerca dos critérios de inclusão quer seja acerca do resultado da estatistica final. Tudo cheira um pouco a "cherry picking" com uma grande quantidade de estudos a serem traduzidos a partir do chinês pelos autores e revisores (também chineses), porque a publicação original foi feita em revistas de medicina tradicional chinesa. Suponho que os trabalhos que não chegassem a determinadas conclusões não seriam sequer aceites nessas revistas com a mesma facildiade, mas nem sabemos isso (não sabemos quase nada sobre o que para lá andam a publicar). Mais, aparentemente nesta revisão, estudos que resultassem em controlos com falsa acupunctura serem iguais a acupunctura, nem sequer foram incluidos, por principio! (1).
"Publication bias" é sempre um problema, mas por isso o valor de cada revista não é igual em todo o panorama cientifico. E para se julgar a Pocranilogia não se pode ir perguntar aos Pocranilogistas os que é que eles andam a dizer nas revistas criadas para publicar artigos de Pocranilogia.
Antes de bricarem no seu próprio canto e dizer que fazem ciencia eles têm de provar perante a comunidade cientifica que é ciencia realmente o que andam a fazer. Se não, isto é só criar um jornal e já está, toda a gente faz ciência. Não vice-versa como se pretende fazer aqui.
Depois, são referidos os efeitos face a grupos controle, mas não são referidos os valores de significancia para esses efeitos. Uma coisa é ter um efeito registado, outra completamente diferente é saber qual a probabilidade de presenciar esse efeito apenas por acaso. Estatistica básica. Mas nada de valores de significancia referidos nesta revisão.
Uma ultima nota diz respeito à ambição do estudo. Em ocasiões diferentes diz coisas diferentes. Num momento dizem que a recomendação de usar a acupunctura como tratamento cabe a organismos nacionais, portando não estando eles a recomendar a acupunctura como normalmente é referido por acupunctores, noutro dizem claramente que pretendem promover "o seu uso adequado".
É de notar que são referidos neste trabalho que há desafios metodológicos envolvidos e também a discussão que havia na altura em torno deles (ainda há hoje em dia mas foram feitos muitos progressos - como disse é notoriamente dificil isolar a acupunctura do efeito placebo e outros tipos de "bias", porque a ocultação total é um problema, já que alguém tem de estar a saber se está a fazer acupunctura ou não). Mas ao menos isso pode ser dito em abono dos autores.
Mas também por isso a questão que se põe é: Agora que sabemos melhor como fazer estes testes e como temos metaestudos e um conhecimento que apontam na direcção oposta, porque não é actualizada esta informação? Porque continua afinal esta recomendação?
Não sei. Isso é uma questão que eles deviam ter já respondida mas não têm.
Notas:
(1) In many published placebo-controlled trials, sham acupuncture was carried out
by needling at incorrect, theoretically irrelevant sites. Such a control really only
offers information about the most effective sites of needling, not about the
specific effects of acupuncture (13). Positive results from such trials, which
revealed that genuine acupuncture is superior to sham acupuncture with
statistical significance, provide evidence showing the effectiveness of
acupuncture treatment. On the other hand, negative results from such trials, in
which both the genuine and sham acupuncture showed considerable therapeutic
effects with no significant difference between them, can hardly be taken as
evidence negating the effectiveness of acupuncture. In the latter case, especially
in treatment of pain, most authors could only draw the conclusion that additional
control studies were needed. Therefore, these reports are generally not included
in this review." - Obrigado ao Marco Filipe pela nota.
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