Com a liberdade e o acesso livre à informação vem a responsabilidade acrescida de saber pensar criticamente antes de chegar a conclusões e tomar decisões. Pensar criticamente não é aceitar intuitivamente uma ideia pelo que ela parece ou pelo quanto ela seduz. Pensar criticamente é tornar consciente o processo de avaliar um argumento e de chegar a uma conclusão. E fazê-lo metodicamente.
Tentar ver as coisas a preto e branco, optar pelo juízo rápido e depois não o largar, são tentações que todos temos. Mas são perigosas.
O caso do movimento anti-vacinação é um exemplo da pertinência das questões levantadas acima.
A evidência cientifica e histórica é sólida na justificação da vacinação.
A evidencia contra é anedótica no melhor dos casos. Anedótica e a alegar conspiração para justificar a falta de outra evidências necessárias. E essas são marcas típicas de ideias erradas - sem justificações razoáveis. E se a evidencia é anedótica, a argumentação é um saco de falácias. Mas já lá vamos.
Uma coisa não é verdade ou mentira só porque podemos imaginar uma conspiração à volta dela – podemos imaginar conspirações à volta de tudo e só uma pequena percentagem será real. A conspiração por si não justifica nada (neste caso, o diabo da Bigfarma e dos médicos – que escondem os efeitos adversos mais terríveis que só uns eleitos podem saber).
Por outro lado, uma coisa não é verdade só porque existem histórias de sucesso - mesmo que sejam verdade - a suportar essa ideia. Histórinhas, com quem conta uma anedota, vai haver acerca de qualquer coisa que nós imaginemos que alguém possa acreditar. E mesmo quando são verdadeiras não devem ser usadas como sendo uma amostra fiável de um universo maior. Normalmente são escolhidas por serem concordantes com o que se quer provar, aquilo a que se chama “cherry picking”, negligenciando todos os outros casos e são ainda demasiado poucas para serem significativas. Temos de saber todas as histórias, ver a proporção de casos de sucesso e de insucesso e só então concluir. Também é preciso avaliar o contexto e o fundo teórico (aquilo que está bem estabelecido e diz respeito ao caso), e então julgar. É preciso saber hierarquizar a evidência em graus de força de prova e avaliar a plausibilidade de acordo com a justificação que possa haver. Em alguns casos a evidência pode ser tão forte que derruba teorias, mas isso é outra história.
Sabemos que estão a aparecer surtos de doenças previamente controladas (na era antes anti-vacinação). No entanto ainda aparecem os defensores desta ideologia a argumentar que têm 3 ou 4 filhos não vacinados e que estão todos bem. Isto é claramente anedótico como evidência num contexto maior e como argumento contra a vacinação.
Outra falácia: Também sabemos que uma coisa não é boa só porque é natural. A doença e a morte são naturais. Tal como as aflotoxinas e o curare. O que é natural pode ser bom, mas para sabermos isso temos de encontrar outro argumento para além do facto de ser natural. Chama-se a este argumento – só apelando ao facto de ser natural - “falácia do naturalista” e é abusado por defensores da anti-vacinação.
Ironicamente, os casos bem sucedidos da anti-vacinação que poderão existir neste momento, (para além de poderem sempre deixar de ser bem sucedidos no dia seguinte), são com muita probabilidade bem sucedidos apenas porque os outros estão vacinados, fazendo como uma barreira de protecção à sua volta. Uma almofada de segurança que lhes permite dizer que não estão vacinados e não apanharam doenças nenhumas.
E é por isso que ao deixarem de se vacinar, a si e aos seus, estas pessoas estão a por a todos em risco. As vacinas não são 100% eficazes. São muito eficazes, mas 100% não há nada, nem sequer as vacinas. Existe assim, para cada vacina, valores de protecção de “rebanho”. Valores de taxas de vacinação de uma população, abaixo da qual, essa almofada de protecção deixa de existir. Para todos. Para os que agora abusam dela para dizer que não se vacinaram e estão bem, e para os que se vacinaram e para além da sua protecção de imunidade pessoal contam com a luta global contra a doença.
Outro argumento, para lá da evidência anedótica e da falácia do naturalista, é o de argumentar pelos perigos das vacinas. Isto começou com um artigo que associava a vacina tríplice ao autismo, gozou do apoio de “experts” em vacinas e paternidade como por exemplo a Britney Spears e mesmo antes de se ter conhecido a origem fraudulenta do artigo já se tinha reunido evidência cientifica suficiente para mostrar que não havia relação entre autismo e vacinação (algo que é sempre difícil que é provar uma negativa). Mas a coisa persistiu.
Dos perigos das vacinas, e aqui tenho de admitir que existem alguns efeitos secundários mas nada a que seja razoável por lado a lado com os efeitos das doenças, alguns concluem que não têm eficácia. Mas a lógica aqui não segue. Até podiam ter imensos e perigosos efeitos secundários e ter de qualquer maneira uma eficácia colossal contra os agentes mórbidos. Segurança e eficácia são propriedades diferentes que são aqui confundidas e sem que nenhuma delas seja um problema.
Numa linha igualmente carente de lógica e justificação cientifica estão os que negam a realidade da existencia de vírus e bactérias. Consideram a doença uma coisa que é apenas causada por energias esquisitas ou forças bizarras e portanto não vêm a vantagem em administrar formas mortas ou atenuadas de agentes patógenicos para induzir imunidade. Negam de uma assentada uma quantidade colossal de evidencia acumulada ao longo de décadas, e colhida através de varias linhas de investigação. A ultima das quais, e a propósito, está relacionada com a comprovação da eficácia das vacinas.
Enquanto existem países onde morrem crianças porque não se conseguem controlar as doenças recorrendo à vacinação, nos países civilizados e sob o slogan de que “cada um tem direito a ter a sua opinião”, começam a surgir novas ondas de doenças para as quais hà vacina, por uma questão ideológica.
Mas afinal cada um tem direito à sua própria opinião, mas não à sua própria realidade.
A internet – a forma pela qual estas coisas se têm disseminado, tal qual vírus patológico - é dificilmente a culpada, já que são as pessoas que têm de aprender a pensar criticamente sobre as questões. Os média já não vejo com tanta inocência. Ao colocarem lado a lado diferentes ideias de um modo neutro, e dando o mesmo espaço de justificação a cada uma, vão deixar quem não se debruçar mais sobre o tema com a ideia de que são ideias em pé de igualdade perante a realidade. Por várias razões que tenho explorado neste blogue, nomeadamente os “apelos à ignorância”, dizer que determinada coisa tem “justificação cientifica” já não é suficiente para dar autoridade a nada (ser jogador de futebol no entanto parece que é), a não ser que seja para vender produtos de emagrecimento.
O apelo à ignorância é a ultima falácia com que termina o artigo do Publico que me levou a escrever este “post”. São, de um modo geral, a tentativa de se justificar algo com aquilo que não se sabe. Mas o que não se sabe não serve para justificar nada. Diz o referenciado defensor da anti-vacinação no mesmo jornal: “Há algo irrefutável: as certezas cientificas de hoje podem ser mentiras amanhã.” . Mas por muito que seja verdade que a ciência erra e evolui, isso não quer dizer que esteja errada neste aspecto especifico - ou que lhe vá dar razão neste ponto especifico. Para isso é preciso outra linha de argumentação e de evidencia, independente do facto da ciência ser perfeita ou não, nomeadamente uma que suporte por si só a anti-vacinação. Se a ciência vai contradizer-se neste aspecto não sabemos. Para já contradições tão gritantes não são de esperar quando há um volume de evidência tão sólido como há para a vacinação e depois isto é querer adivinhar o futuro sem apresentar razões. Não só esta argumentação é refutável como facilmente refutável. É um argumento pela ignorância – uma falácia bem conhecida. E no entanto o jornalista também não diz nada. Quem souber pensar que pense e quem saiba ver que veja – não me parece bem de todo quando se põem tantos testemunhos anedóticos e sabendo o poder que estes têm no conhecimento opinativo.
Mas é preciso alguém que chame a atenção de que as pessoas que defendem esta ideologia não estão só factualmente erradas como estão a argumentar mal. E é preciso chamar a atenção das pessoas que se querem continuar a poder fazer escolhas têm de saber mais e justificar melhor o que querem.
Porque assim, eu pelo menos, sou da opinião de ir para a solução de tornar a vacinação obrigatória.
Para não estarem uns a pagar pela teimosia de outros em não aprender os factos e não aprender a pensar.
Podemos não saber o que é a verdade. Mas devemos escolher aquelas coisas que têm a melhor justificação de lá andar perto a cada momento. Não escolher a dedo os exemplos, não tentar adivinhar de acordo com o que nós desejamos e não confundir o direito a ter uma opinião com conhecimento. Esse precisa de uma justificação melhor que um conjunto de factos arbitrários, inventados, o enconbrimento de outros e uma sarrafada de falácias.
O artigo do Publico é este:
http://www.publico.pt/Sociedade/ha-cada-vez-mais-pais-a-dizer-nao-as-vacinas-como-forma-de-prevenir-doencas_1501266
Cepticismo, naturalismo e divulgação científica. Uma discussão sobre o que é ou não matéria de facto.
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segunda-feira, 4 de julho de 2011
Anti-vacinação, o direito de escolher e o que isso exige. E porquê.
Etiquetas:
anti-vacinação,
ciência; espírito crítico
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