quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Sobre a ciência

A ciência evolui - para além do acumulo de conhecimento.

Talvez o que distingue a ciência da filosofia seja o empirismo sistemático. Enquanto que a filosofia se preocupa com o que é que podemos saber e como podemos saber, a ciência actua como se a resposta para isso fosse dada pelo próprio progresso do conhecimento. 

Em alguns casos em que os principios filosóficos da ciência não eram suficientes para continuar a progredir, a estrutura procedural da ciencia alterou-se de modo a conseguir encontrar mais respostas. Um bom exemplo foi a passagem do verficacionismo para o falsificacionismo(1), notada à posteriori pelos filósofos da ciência. À posteriori porque a ciência já estava a funcionar com a forma de falsificacionismo mais actual quando Popper lançou as linhas mais gerais. Darwin e Einstein foram os verdadeiros revolucionários. 

Ambos mostraram como o conhecimento continuava a progredir sem que a ciência se validasse "à moda antiga". Observaçao direta e verificacionismo ficavam obsoletos ainda antes de ser decretado o seu fim.

O empirismo sistematico e metodologico não foi ultrapassado mas ganhou uma nova dimensão ao admitir-se que se conseguimos prever o futuro além de explicar o passado, em relação a uma determinada questão, é porque provavelmente conhecemos um fenómeno. 

A plausibilidade

E "provavelemente" é o melhor que podemos dizer. Porque provavelmente não podemos ter a certeza de nada. E em termos absolutos a ciência não deveria provar ou validar-se a si própria. Daria um problema de auto-referencia sem solução. Mas este é um problema para qualquer forma de conhecimento. Pois se tentamos justificar esse conhecimento com os próprios conhecimentos, seja ele qual for, estamos a cair em auto-referência. 

Como é que saímos deste impasse? De modo absoluto não creio que tenha solução. Ou seja, penso que haverá sempre coisas que teremos de assumir como sendo verdadeiras, ainda que apenas provisóriamente. O que se impoe então é saber se o conhecimento que se adquiriu é ou não o melhor que se pode fazer. Qual a plausibilidade relativa do que acreditamos.

A ciência é um integrado complexo

E aqui a ciência tem um comportamento de predador. Se uma solução serve para explicar melhor um fenómeno, venha essa solução de um filosofo ou de um teologo, ela é aceite. Porque existe uma linha de intersecção larga da ciência com a filosofia. Enquanto que eu comecei este texto por dizer que provavelemente aquilo que distingue a ciência da filosofia, a realidade é que existem muito mais coisas que as unem, pois a ciência não é apenas empirismo. 

Parte da ciência, e uma parte consideravel e importante é a discução aberta. Provavelmente é esta discussão aquilo que a valida. Que a valida, não como verdade absoluta, mas como explicação plausível ou como sendo o melhor que se pode. E isto não é muito diferente do que fazem os filósofos. Sobretudo se verificamos que a ciência açanbarcou ferramentas como por exemplo o pensamento crítico. Ferramentas essas que vêm da filosofia. Alias muito do que é ciencia hoje já foi filosofia no passado. Mas o que quero deixar explicito é que essa diferença, a linha entre a filosofia e a ciência não é clara. Tal como não é facil distinguir ciência de pseudociência. Em ambos os casos porque uma "canibaliza" conceitos da outra, mas o que se passa nas pseudociencias é que não há repeito pela consistencia e os conceitos são escolhidos ad-hoc. Mas isso é outra discução.

Outra area que importa fazer uma grande menção honrosa é a matemática. Sem matemática não há ciência. É assim tão simples e tão obvio. Enquanto linguagem a matemática providencia à ciencia uma base clara de descrever muitos fenomenos. Enquanto processo, a matemática dá à ciência a capacidade de usar os seu metodos para produzir mais conhecimento e analizar informação. Que a matemática prossiga autonomamente, o que acontece quase sempre, não é um problema. É uma vantagem. A titulo de curiosidade, diga-se que há matemáticos que defendem que a matemática é uma area de conhecimento empirica. E eu tambem penso assim. O que faria dela uma ciência completa.

Plausibilidade pela consistência

Outra linha de validação do conhecimento cientifico e que aumenta não a veracidade absoluta de uma preposição mas acrescenta muito acerca da sua plausibilidade é a consistência interna da ciência. Se conseguimos verificar a mesma teoria por linhas de investigação diferentes, temos aqui um argumento de consistencia. E mais importante ainda, se essa nova teoria se consegue integrar lógica e matemáticamente num quadro cognitivo maior, com as outras teorias todas que conseguimos descrever antes por origens diferentes e em areas diferentes, temos que a plausibilidade dessa teoria ou explicação aumenta muito. Porque demosntram consistência. A biologia não pode ser feita de teorias incompativeis com a quimica ou com a física por exemplo. Tudo tem de funcionar articuladamente. Se isso não acontece, então temos um problema. Como por exemplo a integração da mecanica quantica com a relatividade. Um grande problema. Mas como tenho dito, mesmo sabendo que há algo errado e por resolver, não é por esse facto que deixam de ser a melhor explicação possivel. Isso acontece, obviamente quando aparecer uma teoria que o faça melhor. A teoria das cordas está no bom caminho.

Mas este post não é sobre casos específicos, é sim sobre a validação da propria ciencia enquanto conhecimento. E do que se pode esperar do significado de uma validação do conhecimento. Porque como propuz logo ao principio, não podemos de um modo "à prova de bala", justificar um conhecimento com ele próprio. A auto-referencia é um erro de raciocínio. Em ciência e em filosofia. Por outro lado, obviamente, este não é um problema da ciência, mas sim de toda e qualquer forma de conhecimento que se queira fechar em si própria. E é essa a solução que a ciência encontrou. É manter várias vias de validação a funcionar ao mesmo tempo enquanto se assegura que existe consistencia ( não haver contradições lógicas formais ou informais) entre essas vias todas e dentro dela própria.

Negacionismos absolutos e afins são auto-refutantes. 

Este argumento é à prova de bala? Mostra para alem de qualquer objecção que a ciência se pode validar a ela própria? Não. Até porque podemos estar todos a viver na "Matrix" e não saber. Mas encontrar uma consistencia satisfatória no conhecimento gerado enquanto se procura manter uma ancora na realidade através do empirismo metodico e sistemático diz muito acerca da plausibilidade do conhecimento cientifico. Tanto que não sendo possivel dizer que a ciencia alcança certezas, se pode mostrar, pela integração de todas estas ferramentas, que é o melhor que o ser humano consegue para produzir conhecimento.

A não se que se assuma que a verdade não existe. E que uma crença é tão verdadeira como qualquer outra, independentemente da justificação que tenha.

Mas a ciencia é acerca daquilo que se pode saber, não é do que não se pode. Mas o que não se pode saber, nós não sabemos o que é. Não sabemos nada. De momento. Por isso, tentar adivinhar não vale. Porque isso não é nada. E mesmo que esta realidade seja virtual, para já é tudo o que podemos esgravatar para tentar preceber de onde veio. E sem duvida comprender como se comporta. Mesmo que seja virtual, é o mundo que nos afecta. E mesmo que só possamos chegar a verdades incompletas sobre uma realidade virtual, então é melhor que nada. 

Usar isto como argumento para colocar o palpite ao nivel de uma forma de conhecimento é errado. E quem não acha que pode construir conhecimento então não vale a pena sequer discutir, porque nunca se vai saber o resultado da discoção, nunca vai saber se a cada momento o argumento é valido, não vai saber nada. Para ilustrar esta situação, proponho uma refleção sobre a frase:

"É verdade que a verdade não existe". 

Conclusões

Em resumo, o que torna a ciencia especial e aquilo que a torna o sistema cognitivo preferido dos cepticos é um conjunto de coisas e a intergração destas. A saber, a matemática, a lógica, pensamento crítico, a abertura a refutação e a procura de extrair informação do meio exterior. 

Não se pode provar a ela própria, mas nada pode. Pode sim dizer-se que é o melhor que se consegue e que isso já é algo, porque consegue explicações plausíveis. E capazes de prever o futuro. E capazes de fazer evoluir o próprio processo de conhecimento. A própria ciencia, como referido acima evolui.

Por ultimo gostava de voltar aqui a referir que usar aquilo que não sabemos para provar algo é uma falácia. Dizer " a ciência não explica tudo" ou "a ciência tem limites" para provar algo não serve. Se queremos provar como conhecimento uma crença qualquer temos de o fazer em relação às preposições resultantes dessa crença e de como elas podem ser validadas. 

Se acreditamos que as crenças são todas iguais e que não há nada que possa ser justificavel, ainda que parcialmente, então nem vale a pena começar um argumento, porque está perdido à partida.

Notas:

(1) Popper foi refutado ainda em vida acerca do falsificacionismo. Ficou no entanto de pé uma forma menos forte em que o que se testa são condições associadas à teoria, uma vez que a critica que lhe foi feita consistia em que às vezes testar diretamente uma teoria em relação ao que ela prevê é impossivel. Popper para o fim da vida dedicou-se a tentar determinar quais as caracteristicas dessas condições associadas que podem e são testadas. De um modo geral, a capacidade de uma teoria fazer previsões que sejam verificadas não foi derrubada. Apenas o modo como é feito. As teorias ainda têm de fazer previsões, ainda que não diretas. 

8 comentários:

NG disse...

"Popper foi refutado ainda em vida acerca do falsificacionismo"

Foi refutado por quem e onde, João?

João disse...

Lakatos. acerca das condições da falsificação.

Lakatos propos que tinha de ser de acordo com um programa de investigação porque en tudo podia ser diretamente falsificado.

Se não nunca se podia melhorar uma teoria. Assim que falha-se uma previsão ia tudo para o lixo. E às vezes o erro é ajustavel.

Em relação a coisas que fossem diretamente ao cerne da teoria e que implicassem a sua invalidação imediata isso pode ser dificil de conseguir.

Portanto ficamos com uma forma moderada de falsificacionismo.

Popper aceitou essas criticas e dedicou os ultimos esforços a estudar como teria de ser as condiçoes acessorias de uma teoria a serem testadas.

NG disse...

João,

Obrigado pela referência.

"Lakatos's own key examples of pseudoscience were Ptolemaic astronomy, Velikowsky's planetary cosmogony, Freudian psychoanalysis, 20th century Soviet Marxism[9], Lysenko's biology, Bohr's Quantum Mechanics post-1924, astrology, psychiatry, sociology and neo-classic economy.." "nobody to date has yet found a demarcation criterion according to which Darwin can be described as scientific"

João disse...

Nuno Gaspar:

Lakatos fez uma critica boa a Popper, não quer dizer que tivesse sempre razão. Enganou-se redondamente em relação à mecanica quantica. Aquilo acerta teste apos teste, assustadoramente. E eu nunca gostei dela, mas tenho de a aceitar.

Quanto ao facto de ninguem ter encontrado um critério pelo qual Darwin é ciencia, isso so é verdade porque é de facto dificil definir ciencia. O que eu digo no meu post. Essa frase não é muito feliz da ideia que Darwin não é ciencia.

O que se esta a passar nos dias que correm é que o conceito de ciencia é definido segundo vários critérios e que é um sistema de conhecimento muto aberto.

É de facto acerca da melhor explicação possivel, seja ela qual for e venha de onde venha.

Os critério que estão aceites correntemente são os que eu tenho aqui descrito e o Ludwig tem falado.

Integração com a ciencia conhecida e com os factos conhecidos e a capacidade de fazer previsões e proporcionar progresso.

NG disse...

"... capacidade de fazer previsões e proporcionar progresso."

Capacidade de fazer previsões acho que ninguém põe em causa. Por isso é que acho que as ciências sociais e humanas, economia, história, psicologia, sociologia, estão do mais a cair para a literatura do que para outra coisa.
Proporcionar progresso já acho mais difícil. A ciência tanto proporciona progresso como destruição total.

Eu ainda não percebi é porque é que as definições tradicionais de conhecimento que aprendiamos na disciplina de filosofia no secundário nos anos 80: empírico, científico, filosófico e religioso não são mais adequadas para descrever o que podemos conhecer.
Nem percebi porque chamaste ingénua a minha pergunta ao Ludwig sobre a sustentação empírica da afirmação de falsidade da proposição "os problemas filosóficos são resolvidos ou estudados recorrendo exclusivamente ao pensamento". Não é o que fazem, por exemplo, ao tentar definir o próprio conceito de ciência?

João disse...

Nuno Gaspar:

A capacidade de fazer previsões é transversal à ciencia.

O progresso refere-se ao progresso do conhecimento sobre a realidade e até de como deveria ser aplicado.

Não quer dizer que a humanidade esteja a fazer o que sugere a ciencia.

A civilização não é toda cientifica, como bem gostas de lembrar.

Quanto à tua questão é sim, a filosofia é quase toda de sofá. Não que isso seja um problema se os filosofos acordarem que o cérebro humano falha muito e que a experiencia é o unico tira teimas a que podemos recorrer.

O que se passa é que nem filosofar podes se não tiveres contato nenhum com o meio exterior. Nem pensar conseguias porque o cerebro não se desenvolve. Tem de entrar informação durante anos até começares a poder usar os circuitos neuronais para alguma coisa complexa.

João disse...

Quanto aquelas areas que referes, são muito mais recentes que as ciencias da natureza classicas, mas são ciencias.

São menos precisas nas previsões e mais vagas, mas permitem mais que aquilo que chega aos olhos do publico.

Muitos economistas havia descrito a bolha do imobiliario antes dela rebentar. Eu sei porque tinha lifo antes sobre isso, para ai um ano ou 2! Porque não agiram? Não faço ideia. É como em relaçao ao clima... Há sempre uma componente ambiciosa que não quer parar.

NG disse...

"O que se passa é que nem filosofar podes se não tiveres contato nenhum com o meio exterior. Nem pensar conseguias porque o cerebro não se desenvolve. Tem de entrar informação durante anos até começares a poder usar os circuitos neuronais para alguma coisa complexa."

Obviamente. O conhecimento empírico alimenta todos os outros.

"Muitos economistas haviam descrito a bolha do imobiliario antes dela rebentar"

A cada momento, há muita gente a dizer muita coisa diferente sobre o que vai acontecer. Alguns têm que acertar. Isso não demonstra a capacidade de previsão de uma área do conhecimento.
Acabo de ler "The drunkard's walk, how randomness rules our lives" de Leonard Mlodinov (não sei se já publicaram em Portugal. Tinha lido há pouco "Fooled by randomness" e o "The Black Swan" de Taleb. Curiosamente não fazem referências um ao outro mas têm algumas referências comuns (falam muito de Kahneman e Tversky) e acabam com conclusões muito semelhantes: "o acaso é um conceito mais fundamental que a causalidade"
ou sabemos menos do que aquilo que julgamos saber ("arrogância epistémica")
É leitura aconselhada para cépticos autênticos.