quarta-feira, 24 de outubro de 2012

L' Aquila. Apologia dos sismólogos.

Dos 7 condenados a 6 anos de prisão por causa do terramoto de L'aquila, apenas 6 são sismólogos. O 7º é um engenheiro hidráulico  que era o vice presidente da casa de proteção civil. E foi ele quem fez o discurso onde é dito que "não há perigo".

Por sua recriação, acrescentou ainda algo que não foi discutido na reunião precedente e que os simólogos consideram um disparate: disse que pequenos abalos tiram a força a um maior que venha a caminho e que isso é um bom sinal.

Não consegui encontrar as minutas da reunião cientifica em que todos os 7 estiveram presentes, mas a imprensa parece unânime em que nelas não há sinais que tenha sido dito nada tão conciso como "não há perigo". Um dos sismólogos, Boschi, é mesmo citado dizendo (nessa reunião) que não é possível dizer que não há perigo, que desde sempre se soube que Aquila é uma região sísmica mas que no entanto um terramoto em breve é pouco provável.

De facto a região é sacudida frequentemente por pequenos abalos desde sempre, e criou-se hábito de se sair de dentro de casa e passar a noite na rua por altura destes abalos. Também tem história de grandes abalos com muitas mortes. O ultimo desde género foi recente à escala geologica: 1786, e 6000 pessoas morreram.

Isto é importante para compreender o contexto em que um oficial da protecção civil entende dizer que "não há perigo" quando os cientistas da especialidade lhe dizem realmente "o perigo é reduzido para o curto prazo." Na realidade os cientistas e o oficial da protecção civil estão a responder a uma situação criada por um tecnico de laboratório que decidiu andar de microfone na mão pela região a alertar as pessoas para fugir - e isto neste contexto de zona sismica.

Este senhor entendeu que podia tirar essa conclusão a partir da leitura de concentrações do gás radon que podem variar antes de um sismo. No entanto, desde os anos 70 que esta abordagem tem perdido credibilidade, pois há mais razões para haver libertação de radon e os resultados são inconsistentes. A comunidade de sismólogos, diz que não é possivel prever sismos. Com radon ou com pequenos tremores.

Não havia portanto razão para temer mais um sismo naquela altura que noutra algura qualquer (amanhã?) em L'aquila.

E esse era foi o contexto em que foi dito que "não ha perigo". Nunca poderia querer dizer que "o perigo é zero" mas sim que "por causa disto e por isto apenas não há um risco acrescentado". Há aqui um problema tão grande de interpretação entre o vice-presidente da casa civil que serviu de porta-voz dos cientistas como entre o porta-voz e o público. O público nunca deveria ter tirado as afirmações do contexto do que se sabe ser cientificamente estabelecido acerca do potencial sismico da area. E o porta-voz, mesmo querendo evitar panicos, nunca deveria ter deixado de ter o cuidado de fazer como os cientistas: salientar que certezas não existem, que a zona é sempre uma zona de risco, mas os factores identificados como sendo de risco não são realmente mais que mitos.

Deveriam neste ponto os cientistas ter ultrapassado o vice-presidente da casa civil e dito: "não foi bem isso que nós dissemos". Se calhar sim. À posteriori é fácil dizer que eles tinham essa obrigação. Mas olhando para trás, podemos imaginar os estragos maiores que isso poderia causar; vejamos:

Era pouco provável que fosse nos dias seguintes haver um sismo, do ponto de vista da ciencia, tanto como é pouco provavel que nos saia o euromillhões. No entanto quando olhamos para trás e pensamos no processo não conseguimos dizer como podia ser diferente. E se calhar não podia, mas não é isso que importa. É o que se poderia prever. Valia a pena arranjar sarilhos (ia haver repercursões politicas certamente) e complicar a mensagem dada às pessoas por causa de uma coisa que quase de certeza não ia acontecer? E que provavelmente e por plausibilidade não iria mudar nada?

Eu acho que a conclusão que se pode tirar daqui é que sim. Que vale. É sabido que as pessoas ouvem em parte aquilo que querem ouvir. E o "não há perigo" tornou-se numa afirmação absoluta, sem contexto onde ser interpretada. Eles deviam ter avançado. Mas considera-los culpados pela morte de pessoas? Nem um pouco. E agora que o imprevisível aconteceu, é fácil falar. E bodes espiatórios é algo que dá sempre geito.

Seria diferente se a mensagem fosse apenas: "não sabemos, não é possível prever e os acontecimentos recentes não são por si só causa para alarme"?

As pessoas teriam abandonado a cidade caso a mensagem fosse clara e bem compreendida? Penso que não - pelo menos não fazia sentido para os que lá já moravam. Quem tinha medo de terramotos e se preocupava com o potencial sísmico já teria saído há uns séculos atrás.

A mensagem seria sempre que não havia mais razões conhecidas para alarme naquela altura que nos anos e meses anteriores. E essa mensagem estaria correcta aos olhos do conhecimento actual. E isso é o melhor que podemos fazer, senão passamos a vida a fugir de fantasmas.

Neste quadro, vejo pouca motivação para os cientistas irem dizer: "não foi bem isso que nós dissemos". E o porta-voz, o engenheiro hidráulico  é ele culpado por mortes? Por ter dado um relato da situação melhor do que devia ter dado?

É difícil de dizer, porque me parece que nada iria mudar com a pequena alteração do "não há perigo" para "o perigo é baixo". Há pessoas que disseram que ficaram só por causa do "não há perigo". Mas agora é fácil dizer isso. Vivem numa zona de risco há anos e iriam fugir por coisas que se sabe serem falsos alarmes (o gaz radon e os tremores dos dias anteriores)? Não faz lá muito sentido. Parece-me daquelas coisas que depois do facto tudo é mais obvio que o que seria e é na realidade.

Em todo o caso o que me parece é que 6 dos condenados não têm culpa nenhuma. Quanto muito este processo daria origem a um estudo sobre a ética de como se deveria a comunidade cientifica portar numa situação destas. Não é claro que eles tivessem a obrigação de corrigir o que o oficial decidiu dizer. E mesmo o oficial não me parece que seja tão culpado como merecendo 6 anos de prisão. Isso seria, e até mais, se ele soubesse algo que escondeu. Mas não sabia. Não havia nada de novo a recear e essa era a mensagem verdadeira. E ele não estava a dizer certamente que L'Aquila deixou de ser uma zona de alto risco sísmico.  E isso toda a gente sabia. Era esse o contexto. Uma multa? Talvez. Pesada? Também talvez, sim. Aulas de Italiano e ética? Sem dúvida.

Mas 6 anos? Eu não vejo como se pode por nele a culpa das 300 mortes. Outra vez: Não havia nada de novo para dizer e esse é o contexto do "não há perigo". As pessoas quase de certeza fariam o mesmo se compreendessem a mensagem porque de facto não havia mais razões para abandonar a localidade naquele dia que noutro dia qualquer. E razões são o que nos interessa.

Foram ainda acusados de não terem feito uma vistoria à localidade para avaliar a construção dos edifícios e dar informação às pessoas sobre como se portarem num sismo. Mas isso é um desproposito. Eram construções medievais muitas delas. Era uma aldeia velha. As pessoas pensavam que era anti-sísmica? E só nessa altura se lembraram que deviam ter aprendido o que fazer durante um sismo?

Isto é caça às bruxas.

E é um problema. Porque no futuro, os cientistas serão ainda mais cautelosos com o que dizem (ou então não vão querer falar nada e não vão querer ser consultados diretamente)  e ainda serão mais acusados de levantar falsos alarmes do que o que já são.

É preciso é ensinar as pessoas a pensar em termos de probabilidades porque pelo que me parece esse é todo o cerne da questão. E uma pessoa que fala com o publico conhece esse problema. Quantificar as coisas em probabilidades é uma chatice. A mensagem não passa completamente em muitos casos. Fica apenas uma ideia turva já que "pouco provável , por exemplo, tem um valor diferente conforme o estado de espirito de quem houve. Compreendo que se tenha até optado pelo "não há perigo" já que o risco de errar no curto prazo - e era isso que estava em jogo- era baixo. Muito baixo (e como disse havia história de um processo legal em Itália pela razão oposta - de evacuar em falso alarme).

Agora gostava de saber, se isto continua assim, qual a pena para os negadores do aquecimento global.




7 comentários:

NG disse...

Ó João,
Já te disse que enquanto a leitura de Taleb não fôr obrigatória na admissão às universidades elas para pouco servirão.

http://www.fooledbyrandomness.com/probability.pdf

João disse...

O Taleb não tem nada para ensinar. Distruibuições de pareto logaritimicas não foram descobertas nem investadas por ele. Que a curva de Gauss não dá para tudo, também sabemos.

Mas isso não é o que está em discussão aqui. É se havia razão para quem vivia em L'Aquila fugir só porque havia radon e pequenos tremores, numa zona sismica.

Repara que se achas que as probabilidades não dizem nada então não havia razãos sequer para falar do assunto.

As probabilidades são tudo o que tu tens. Porque fazes uma escolha e não outra, etc. Por exemplo, se tomas o antibiotico ou não, se preferes fumar ou nao fumar, jogar no euromilhões ou não gastar dinheiro naquilo, etc.

João disse...

O problema das probabilidades é quando tens de lidar com numeros pequenos, e casos singulares. As probabilidades dizem muito pouco acerca disso. Mas mesmo assim, a tua melhor aposta é no mais provavel. Se fizeres isso vais estar correcto num maior numero de decisões, embora seja sempre possivel encontrar uma mão cheia delas que correu mal.

O Taleb não pode explicar então porque a medicina e a ciencia são tão bem sucedidas, não pode explicar porque as pessoas perdem mais dinheiro no casino do que aquele com que saiem excepto uma minoria, etc.

E eu li o livro dele. Não presta. Um unico ponto é importante, mas não é tudo. Há acontecimentos imprevisiveis com grande impacto - mas ele não descobriu isso. Nem descobriu nem explicou que a curva de Gauss não serve para nada. Serve para muita coisa como tu devias saber. Tal como a de pareto (power laws).

NG disse...

"a tua melhor aposta é no mais provavel"

O problema é deixar de pensar que o que chamamos de mais provável não passa de uma aposta. E graças a atitudes como a que tu por aqui evidencias, João, muitas probabilidades serem tratadas como certezas e amarradas a legislações e perda de variedade, a mundividências incapazes de conviver com o diferente e com o novo, com catástrofes semeadas pelo meio.

Daqui a 50 anos, vamos ver quantos se lembram do Pinker ou do Dawkins e quantos se lembram do Taleb, da platonicidade, da falácia lúdica, do síndrome do perú e da antifragilidade.

NG disse...

... e quantos cataclismos financeiros, sociais, sanitários e até naturais e suas vítimas serão debitados na conta de quem diz que sabe sem,de facto, saber.

João disse...

Nuno Gaspar:

EStás sempre a fazer apostas.

A minha a atitude neste caso é a de ver a extensão dos estrados no contexto do conhecimento actual.

Não havia razão conhecida para as pessoas abandonarem a cidade. E isso tem de fazer diferença.

Eles não mentiram. E isso tem de fazer diferença.

O porta voz mentiu. E isso devia significar que ele tem de ser penalizado de alguma forma, mas não pela morte de pessoas. SObretudo num pais onde já foram condenados agentes da protecção civil por gerar o panico ao fazer evacuação desnecessária.

O que está mal é julgar as coisas pelo que aconteceu e não pelo que era razoavelmente previsivel que acontecesse. Assim estamos a tratar os homens como se fossem deuses.

NG disse...

"pelo que era razoavelmente previsivel que acontecesse"

Isto quer dizer concretamente o quê, João? Fazemos puto ideia do que vai acontecer? Se tivessem tido essa honestidade certamente ninguém se teria sentido lesado.

Mas se fosse só com os sismos estariamos bem. O problema é que anda meio mundo convencido com predicções fundamentadas com metodologias que se distinguem pouco das usadas em astrologia. O interessante é que esses convencimentos partem normalmente de pessoas que ocupam uma parte do seu tempo a criticar essa e outras actividades que não pretendem explicar como o mundo funciona.