O conceito de alma é um pouco vago. Eu e algumas pessoas que pensam como eu, usamos o termo para designar o nosso próprio estado mental. Por vezes. Não é de facto um termo que use muito. Uso mais estado de espírito. E para o sentimento de nós próprios prefiro usar "consciência".
Mas o importante não é o termo que se usa, é o que queremos dizer com ele.
Se queremos dizer que existe uma alma, para além da nossa mente consciente ou paralela à nossa mente - o que se traduziria de facto em sermos 2 mentes conscientes em paralelo - então isso está errado. Só temos uma alma. E ao que tudo indica (mesmo tudo) esta é emergente dos processos cerebrais. É o resultado da função do cerebro.
Falar em duplicidade da mente ou em planos extraordinários (por postulado) são situações reminisscentes do dualismo - da existencia da tal alma, para além do cerebro.
Podem dar-lhe outros nomes, tal como a respeito da evolução o termo "designio inteligente" serviu para voltar a vender o criacionismo, pois eu agora leio textos que falam de uma alma imortal que os animais não têm mas que não - insistem - estão a falar de dualismo. Não, sem duvida. Devem achar que a alma é a unica coisa que existe, e aqui estamos de acordo. Mas não é nem imortal, nem exclusiva do ser humano (*) - nem independente do cerebro ou sequer minimamente autónoma. As outras propriedades vêm porque era bonito que assim fosse e porque introduzir caracteristicas intestáveis e sem efeitos apenas a elas atribuíveis é sempre facil. E para resolver o ultimo problema, podem sempre descobrir-se umas lacunazinhas.
Negar este dualismo não é o mesmo que dizer que a mente e a consciência são o cerebro. Isso é um pouco impreciso, embora seja aceitavel como metáfora. Porque a mente equivale ao cerebro mas não é o cerebro, no mesmo sentido em que a luz não é a lampada.
É resultado da função, tal como um campo magnético resulta do movimento de cargas eléctricas mas desaparece se estas ficarem estacionárias.
O cérebro são milhares de redes neuronais, formando circuitos complexos que interagem com o corpo, quer via sanguinea - hormonas - quer via receptores nervosos (que são neurónios especializados). Esses circuitos formam sistemas e esses sistemas interagem a vários niveis. Dessa interação entre vários sistemas, emerge a consciencia.
O processo não está completamente definido. Mas o esboço está completo. Não há espaço para sermos algo que vem de fora. Se a alma é a consciencia, ela existe, mas "vêm de dentro". E morre comnosco. Por vezes até antes do corpo.
Quem teve a infelicidade de conviver com pessoas que sofreram lesões cerebrais, tais como um AVC ou um tumor, pode ver como a alma se desfaz ainda antes do resto do corpo. E de acordo com o comportamento, com as alterações da alma, os neurologistas podem prever onde está a lesão.
Em alguns sítios, o que desaparece são as emoções. Noutros a capacidade de dizer o que se quer (e uma pessoa pede um garfo quando precisa de uma caneta, sem perceber a asneira) noutras a capacidade de reconhecer e compreender o próprio corpo (como pessoas que ficam paralíticas de um membro mas insistem e acreditam que ele ainda se move sozinho.
Às vezes o tempo pode ajudar a recuperar algumas faculdades perdidas, ou mais frequentemente a lidar melhor com elas e a contornar os problemas. Em caso de lesões progressivas, vamos vendo o desaparecimento gradual da função do cerebro enquanto a lesão física avança.
As alterações de personalidade em alguns casos são devastadoras. A pessoa que conheciamos deixa de ser a mesma. A perda da moral em lesões do lobo frontal é um caso típico e famoso na literatura.
Dizer que além disto há uma alma, algo que está ali à volta e que além disso é imortal e nos diferencia dos animais (1) é uma asneira, francamente não suportada pela investigação científica. E refutada em larga escala.
No entanto, a defesa do dualismo alma/corpo é uma prática da Igreja católica (1)(2). É na minha opinião a questão central que vai opor a ciência ao catolicismo nos proximos anos/décadas. Depois do criacionismo, do geocentrismo e de outras quantas tretas, este é o debate que se segue.
Admito que até à pouco tempo não havia muita informação para compreender como funcionava o cerebro. Os psicologos tinham uma abordagem tipo "caixa preta", isto é, estudavam-se os resultados como resposta aos estimulos, sem olhar para "o que se passa lá dentro" - daí o termo caixa preta.
Isso acabou. Embora haja muito para compreender, as lacunas do conhecimento não são grandes o suficiente para fazer passar por lá uma alma. Mais facil seria fazer passar um camelo pelo buraco de uma agulha.
Além da informação disponivel através do estudo de lesões que permite avaliar como funciona o cerebro se "desligarmos" este ou aquele sistema, temos meios para o ver a funcionar em tempo real enquanto pedimos a voluntários que pensem em determinados problemas e cumpram determinadas tarefas. Observar as regiões do cerebro que estão activas é feito com recuroso a tecnologias de tomografica de emissão de positrões (PET-Scan) e ressonância magnética funcional. (fMRI).
Estas tecnologias cientificas colocam a psicologia ao nível de ciência "dura", tirando a consciencia e a mente da "caixa preta", e mostrando a sua intercepção abrangente com a neurologia. E a neurologia tornando-se por sua vez das areas mais fascinantes da ciência actual.
Porque a consciencia é fascinante, seja como for que é produzida. Isso nunca estará em causa. Quem quer que tenha medo que a compreensão pode levar à subvalorização está errado.
Assim como achar que manter a consciencia como uma alma sobrenatural que nos proporciona vida eterna, é o caminho racional e lógico:
Certamente que vamos ver muitos argumentos de "dualismo das lacunas", e de "wishfull thinking". Até que eventualemente, como nos outros casos, a ciência seja reconhecida.
(*) Alguns animais são capazes de processos cognitivos complexos com alguma lógica. Possuiem memória de trabalho e de longo prazo. E são capazes de se identificar a si próprios num espelho. Por exemplo os chimpazés, o golfinho ou o cão. Serem capazes de reconhecer o "self" é aceite como o reconhecimento da consciencia. Mostra que há uma identificação do próprio ser para além de um fluxo de estados mentais a quatro dimensões sem "supervisor". Além disso é minha suspeita pessoal que o teste tem falsos negativos. Isto é, que haja animais incapazes de reconhecer a sua imagem no espelho mas que têm uma consciencia superficial do que se passa consigo e que distinguem isso como sendo o seu "self". Penso que o gato poderá estar neste grupo, mas é espéculação minha. Os gatos não são capazes de se identificar ao espelho.
(1) http://dualismos.blogspot.com/2007/12/dualismo-corpo-alma-texto-sntese-do.html
(2)http://cienciareligiao.blogspot.com/2009/12/num-outro-post-referi-triade-ecologica.html
Leitura sugerida neste blogue o post "dualismo das lacunas", baseado num texto do Steve Novella:
http://cronicadaciencia.blogspot.com/2009/01/dualismo-das-lacunas.html
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