sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Não há falta de democracia na ciência. Qualquer um pode ser um cientista. No entanto não pode ter a sua própria realidade.


"fact (derived from the Latin factum, see below) is something that has really occurred or is actually the case. The usual test for a statement of fact is verifiability, that is whether it can be proven to correspond to experience. Standard reference works are often used to check facts. Scientific facts are verified by repeatable experiments."

Wikipédia, - "Fact".

"According to Hilary Putnam, a former student of Hans Reichenbach and Rudolf Carnap, making an observational/theoretical distinction is meaningless."

Wikipédia, - "Logical Positivism (objection)"



O Desidério Murcho decide manter a posição de que devemos regular qualquer crença que as pessoas queiram ver regulada em mais um "post" dirigido ao David Marçal. Ele começa exactamente assim:

"
O David opõe-se a que o estado dê o aval de legitimidade ao que os cientistas consideram cientificamente ilegítimo. Acerca disto eu penso duas coisas e ambas se opõem ao que pensa o David.

Primeiro, penso que é uma má ideia que aceitemos sem pestanejar que o estado passe certificados de legitimidade científica."
Bem, se é assim, então o Desidério devia, em nome da consistencia, ser também contra que o estado passasse certificados de legitimidade cientifica em coisas anti-cientificas 

E é esse o significado que a regulação vai ter. 

A outra parte do problema é o Desidério não reconhecer que o estado não tem outra hipotese, se quer tentar por ordem na casa, a vários niveis, quer seja um crime à mão armada, quer seja uma alegação de cuidados de saude, se não ver o que é factual e o que não é. E os factos mais confiáveis que conhecemos são os trazidos pela ciência. Porque narrativas diferentes colocam e são patognomonicas de partes em conflito. 

Ele diz assim:

"
Tal como era uma má ideia que no passado a igreja católica tivesse o poder de dar ou tirar um aval a uma ideia qualquer. A confusão do David aqui é pensar que no passado isso só era mau porque a igreja não passava os avais com base na ciência. Eu penso que o mal é haver avais únicos, que impedem sub-repticiamente a diversidade epistémica que, como a história nos ensina, é crucial para o desenvolvimento cognitivo da humanidade. E para haver diversidade epistémica, tem de haver erro, incluindo erro grotesco."
A questão é que não é preciso aceitar erro grosseiro. Isto é falso. Qualquer nova modalidade epistémica que pretenda revolucionar a ciência e a filosofia pode muito bem fazer a sua entrada em cena sem fazer cobaias de meio mundo. Como se disse, não se pretende proibir nada, e essas coisas andam aí. Por outro lado, a ciência tem sempre assimilado o que funciona, venha da filosofia ou do acaso, e temos uma ideia razoavel do que funciona como produção de conhecimento e uma muito melhor ainda do que não funciona. Sonhar e teorizar de enfiada, sem bases empiricas e sem testar, é uma delas. Tem usos variados, mas descrever a realidade e fazer previsões não é uma delas. É preciso que haja uma justificação melhor.

Na altura da Igreja Católica não havia discussão aberta. O conhecimento era imposto por autoridade e por antiguidade, e isso não permitia o desenvolvimento epistémico. Hoje há a possibilidade de qualquer um poder dedicar-se e especializar-se numa determinada area, e se descobrir algo de novo poder ser recompensado por isso. As criticas são cerradas e rigorosas aos novos projectos, mas são feitas publicamente e entre especialistas sobretudo, pelo que acaba por ser do interesse de todos ser o mais realista possivel e cada um vigia o outro. Recentemente um estudo manhoso sobre organismos genéticamente modificados caiu no descredito, mesmo sem precisar de ser revisto pelos seus pares mais chegados. Há uma grande interacção entre as areas cientificas e o que funciona são as mesmas coisas. A realidade afinal é a mesma. E a coisa não cai em ciclo vicioso porque há uma massa critica minima de forças em disputa neste meio tão competitivo e tão talentoso. Não impede que haja ovelhas tresmalhadas, mas é notavel e sinal de progresso que se consigam consensos. A melhor demonstração que esses consensos não são sonhos epistemológicos de mentes alienadas é o que tem sido possivel fazer com esses paradigmas que saiem dos consensos. É só olhar à nossa volta. Isso não precisa que se dê aval positivo à pseudociencia para se manter a funcionar.

Uma grande parte do conhecimento cientifico são factos e outra grande parte são teorias que explicam esses factos. Outra parte é o que descobrimos que funciona, epistémicamente, claro. Comportármo-nos como se estivessemos na estava zero, em nome de uma lotaria epistémica,  é um absurdo, que não corresponde ao nosso avanço intelectual. Mas acima de tudo o problema não é a falta de sentido democratico da ciência. Esta só procura explicar como são as coisas. O problema é a realidade estar-se nas tintas para o que queremos dela. O défice democrático, a haver aqui, é da realidade, não da ciência;e dos factos com que esta nos desafia.

Não há uma realidade pessoal "costum made". Provavelmente nem o Céu. O Desidério tem de aceitar isso.

No entanto, mesmo sendo uma realidade ao que sabemos implacável e muitas vezes cruel, ela é muito mais aceitável compreendendo-a, estudando-a e encarando-a do que enfiando a cabeça na areia, ou tapar os ouvidos e dizer "não estou a ouvir, não estou a ouvir". 

O Desidério continua: "Segundo, penso que usar o poder de passar avais de legitimidade científica é incompatível com o ideal de uma sociedade em que as pessoas são mais autónomas intelectualmente e mais conhecedoras da ciência."

Isto tem vários problemas. Um é que assume que as pessoas sabem em média o suficiente sobre o que é que dá sucesso à ciencia. O outro, que me preocupa igualmente é que assume que mesmo conhecendo as virtudes epistemologicas da ciência, estão a par de tudo o que passou (ou não)  por esse método rigoroso. São assumpções francamente erradas e perigosas que podem por qualquer um de nós no lugar do incauto. Quando vou ao médico não quero estar a fazer de policia de tudo o que ele faz. Quero saber que outros médicos, enfermeiros, farmacêuticos, biologos, fisiologistas, etc o fazem por mim, que se vou ao médico já tenho problemas suficientes.

"
Isto porque se as pessoas acreditarem em verdades científicas só porque estas têm o aval do estado, e não por compreenderem os seus fundamentos, não serão menos crédulas do que quem acredita no vidente da esquina."

Sim, não serão, aqui o Desidério tem razão. Mas o problema da educação cientifica tem ser resolvido em simultâneo e não ajuda dar sinais contraditórios aos leigos para o conseguir. De facto a ideia não é obrigar ninguém a acreditar em nada, nem pela sedução, nem pela força  mas sim mostrar-lhes porque sabemos que as coisas são como são. Mas esse trabalho está a ser feito. Não temos de optar entre educar ou aceitar que se legitimem tretas. Pelo contrário. Podemos educar e evitar que se dêem sinais confusos a quem quer e ainda está a aprender. E dar sinais de cuidado a quem não quer porque pode nem ter tempo para isso.

Por as coisas em pé de igualdade, menosprezando o sucesso da ciencia,  não é bom para a sociedade  - que precisa tanto de desenvolver a sua compreensão do universo onde vive. Isso destroi o argumento que usamos nos nossos filhos de que eles têm que estudar, nos professores que eles têm que ensinar, etc. Porque assim, vale tudo. E o que interessa, que é ensinar pensamento critico, fica profundamente aleijado. Em toda a sociedade.  Pela mensagem dada aos leigos, às crianças e pela falta de exisgencia que isso trará em profissionais. É o "ad populum" transformado em epistemologia com tempero de "ad ignorantiam".

"A cultura científica, que o David defende, é incompatível com a crença no que diz o David por ser ele a dizê-lo e por ele ter a autoridade do estado do seu lado."

Não. Porque o David Marçal não quer impor crença, apenas não deixar uma entidade que devia significar honestidade e respeito avançar com uma mentira. Não há imcompatibilidade nenhuma. E depois porque essa crença não perde a justificação por ela não estar escarrapachada em todo o lado - desde que esteja em algum  lado.

"Vale a pena acrescentar que a questão política de fundo é o facto de o David (como aliás quase todos os portugueses) ter uma concepção de estado diferente da minha"

Não será então razão para o Desidério deixar de dizer como devia ser o estado, pelas suas próprias convicções que o estado deve ser feito pelo que quer a maioria? E assim inclusivé decidir-se o que é real ou não? O Desidério continua sobre o que acha que deve ser o estado em prejuizo do que acha que o David Marçal acha que deve ser o estado. E isto porque não queremos que o estado dê uma ideia errada de uma coisa que sabemos com elevada confiança:

"Do seu ponto de vista [do David Marçal], compete ao estado, por meio dos seus avais e certificações, empurrar a sociedade numa dada direcção — na direcção que ele quer. Eu tenho uma concepção diferente: por meio dos seus avais e certificações, o estado tem por única função proteger terceiros e harmonizar conflitos de interesses, deixando a sociedade ir para um lado ou outro, consoante for essa a vontade de todas as pessoas que constituem a sociedade, e não apenas de quem tem a verdade científica do seu lado."

Pois. Isso tem vários problemas. O estado não tem outra hipotese que não ser guiar a sociedade. É para isso que existe. É por isso que elegemos lideres. Não podemos mandar todos ao mesmo tempo. E a democracia não é um sistema de conhecimento, é um sistema de legitimar o poder. Por isso não conflitua com a ciência. 

Depois, as tretas prejudicam todos - primeiros, segundos, terceiros, quartos... (menos os que estão a comercializar a coisa e às vezes até estes). E por fim, pode haver e é causa potencial de conflito de interesses ou consequencia disso, narrativas diferentes sobre acontecimentos e efeitos. Por isso o estado tem de intervir recorrendo ao que sabemos que provavelmente é a verdade. E aí entra a ciência (está a ficar repetitivo não é? Mas a culpa não é minha...)

"É defensável o género de paternalismo benevolente do estado que defende o David? Sim, claro. Acontece apenas que não conheço qualquer defesa que me pareça boa."

O Desidério começava por ter de compreender o genero de paternalismo que sugere o David para perceber que é melhor que o seu paternalismo de dizer "são tolos, deixa-los estar...". Concordo que ele não conhece qualquer defesa que lhe pareça boa. 

"O problema principal desta concepção de estado é que um estado que usa o seu poder para forçar delicadamente (ainda que não pela força das armas) as pessoas a aceitar certas práticas e ideias e rejeitar outras, está a impedir a própria autonomia mental que quer promover."

Só estará a "forçar" por não mentir. Por omitir uma orientação negativa. Não é uma grande afronta à liberdade intelectual, diria eu.

Não força nada ou limita nada. Não por sugerir que não se use homeopatia ou que ensinemos às crianças que têm poderes especiais. Só se pede uma posição passiva durante o debate público. No entanto a posição activa de permitir e legitimar parece ao Desidério uma defesa da liberdade. Da liberdade de escolher o marisco estragado. Da liberdade de pisar a mina de campo. Da liberdade baseada na ignorância.

Não estamos a discutir teoria das cordas, memética, multiverso ou outras areas cientificas que roçam a filosofia. Estamos a falar de coisas que são factos ou muito perto disso.

"Acreditar que a selecção natural é uma teoria verdadeira porque isso é o que está certificado pelo aval do estado é uma crendice tão tola quanto acreditar que é falsa porque é o que diz a Bíblia. "

Não. Nem por isso. Se partirmos de um e de outro principio, como dados não provados mas provisórios, vamos sempre conseguir compreender mais coisas partindo da evolução do que do criacionismo.

"Acreditar que as crianças índigo ou a homeopatia são crendices sem fundamento só porque não têm o aval do estado é uma crendice tão inane quanto acreditar que são verdadeiras porque eu gostaria que fossem verdadeiras e porque me fazem sentir bem."

Idem. Parte verdade, parte treta. Acreditar sem justificação é sempre pior que acreditar por ter uma justificação forte.  Por isso o David Marçal, eu e muitos outros também insistimos nessa area da divulgação. E pela minha parte gostaria que não fosse boicotada enquanto a mensagem não chega a todos. 

Mas acreditar "sem justificação" porque sabemos que resulta de consensos de especialistas cientificos a acreditar sem razão naquilo que resulta de palpites, eu prefiro a primeira. E é dos poucos apelos à autoridade que confio. Ninguém pode estar a par de tudo. Alguma confiança vai ter de dar algures a uma autoridade. Que seja o consenso cientifico.
Afinal eu gostava de saber se o Desidério quando vai ao médico está disposto a que haja uma regulação legal que diga que especie de coisas lhe podem fazer, ou se vai de mente aberta, decidir passo a passo o que lhe deve ser feito e acreditar que não lhe vão mentir sequer acerca dos actos que se seguem.

"
Tal como o David, preocupa-me os níveis assustadores de crendice na nossa sociedade"

Qual crendice? A de que legitimar a treta e ignorar o que sabemos sobre a realidade não é forçar nada, não é por ninguém em risco, e não é empurrar o mundo numa direcção, mas não o fazer é um atentado à liberdade? A mim preocupa-me que o Desidério tenha feito mais contra o pensamento critico e a divulgação ciência neste país, nos ultimos dias que muitos homeopatas nos ultimos anos.

" Contudo, penso que 1) a melhor maneira de o combater não é com a força dos avais do estado, mas sim com a força da razão."

Plenamente de acordo. 

"E, pior ainda, penso que 2) mesmo que com a força dos avais do estado fosse possível acabar com as crendices, eu opor-me-ia porque isso viola o direito inalienável que elas têm de ser crédulas."

De acordo que existe o direito à crença. Mas não o direito a ver a crença acreditada pelos outros ou legitimada pelo estado. O estado deve ser o mais possivel neutro, até não dar mais para estar quieto. E por mim ainda dá, neste caso.

De qualquer modo isto é apenas o zombie do espantalho do monstro do cientismo criado nos seus primeiros posts. 

As pessoas todas têm direito à crença. Mas se eu não posso obrigar os outros a dizer que a minha é que é boa (não posso, nem quero) os outros nao me podem obrigar a mim a dizer que a deles é boa. E se o estado não pode dizer abertamente o que sabemos sobre a verdade, para não ferir susceptibilidades, também não deve mentir e ferir outras além de enganar toda a gente.

"É esta a nossa discordância. E não vale a pena insistir que aceitamos o direito de as pessoas serem crédulas, ao mesmo tempo que rejeitamos o aval do estado. Isso é exactamente o mesmo que fingir que aceitamos os homossexuais mas rejeitar o aval do estado — o casamento entre eles."


Não. Queremos que o estado faça o que melhor podemos saber que é correcto. Mas são problemas diferentes. Continua a confusão do Desidério não se decidir se é a favor ou contra avais. E não fazer aval pela treta não impede que os homosexuais se casem.
A analise "linha a linha" do post do Desidério acaba aqui. Mas há coisas que passei por cima ou modifiquei para reduzir o tamanho do texto mas que decidi publicar na mesma. O mais importante está respondido. Algumas coisas estão mais elaboradas aí em baixo:


Por si só, o estado não pode dar avais cientificos. O estado não é uma instituiçao cientifica. - o Desidério parece dizer isso e terá alguma razão. Apenas pode dar voz à comunidade cientifica para que esta dê o seu parecer ao gasto de recursos estatais numa determinada area e da percepção desta que deve dar ao publico. E assim, depois,  escolher como a regular ou não e  escolher enfim  que mensagem dar a toda a gente que tem o direito de não saber epistemologia a potes ou dar erros de ortografia. Em nome da liberdade. Quem quiser que faça o que quer. 

Mas não podemos passar por cima do facto de que algumas coisas são boas para a sociedade e outras não. Serem factos cientificos é só uma garantia de confiança. São factos antes de mais nada.

De qualquer modo, não se pretende que isto seja um sistema a toda a prova, infalivel, perfeito. Apenas que seja um mecanismo não invasivo de fornecer alguma segurança a terceiros. Não invasivo porque a maior parte da regulação deverá pertencer aos pares quando não há grandes problemas nessa actividade. Quando há, por exemplo nos "con-artists", nos vendedores de banha-da-cobra,  jogadores (gamblers) profissionais, etc., o estado não tem outra hipotese senão minorar o dano em terceiros de acordo com o contexto e gravidade da questão. E a unica maneira de julgar os acontecimentos e os factos é olhar para os acontecimentos e os factos, e não para fantasias que se façam sobre eles. Se não até o assalto à mão armada podiamos disputar que se trata de um carinho. Ou que nunca existiu e é impossivel por natureza humana. Esse é o  trabalho da ciência.

De facto, os dados cientificos são cada vez mais usados em investigação policial, histórica, etc. Porque são dos mais confiáveis. O estado não tem maneira de fugir à realidade para proteger as pessoas. E para conhecer a realidade o caminho que melhor funciona é o da ciencia. E se pode haver coisas que são verdadeiras que nós não sabemos, a probabilidade destas serem encontradas em teorias milenares ou clones, que não encaixam com centenas de outras linhas de evidencia verificaveis independentemente, é muito reduzida. Por isso, e se não podemos deixar de olhar para o que é a realidade para ter justiça, progresso civilizacional, progresso tecnológico, etc, temos de nos regular de acordo com a ciência.

O problema com algumas crenças populares é que faria mais mal proibi-las que deixá-las estar. Isso iria criar resentimento e dificultar a discussão que poderá levar à compreensão do que afinal é a ciencia e do que ela diz. Mas o problema não é os factos serem cientificos como justificação insuficiente do ponto de vista epistémico. É mesmo para se conseguir manter o dialogo. Mas neste contexto, o minimo que se pede, é não dar a entender que tudo vai bem na terra do faz de conta. O Desidério não aceita isso. Mesmo se acha que o estado não deve dar avais de nada. Este ele acha que deve dar.

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