terça-feira, 1 de março de 2011

O coração como pequeno cérebro e pseudociência relacionada.

Segundo me contaram, passou num canal qualquer num destes dias, um documentário que falava do coração como o "pequeno cérebro". Seria investigação nova e promissora e até me recomendaram que falasse dela aqui. Pois aqui vai:

Pelo que pude averiguar o termo "pequeno cérebro" tem origem num artigo de um senhor chamado Armour, escrito em 1994, que eu não pude ler, mas de que encontrei uma apresentação pelo mesmo autor(1). Tudo o que refere é que há neurónios no coração e à volta dele e que estes neurónios têm influencia na mediação do ritmo cardíaco. Nada de especial. Chama-lhe de facto "pequeno cérebro", logo no título, mas falha redondamente a dar uma explicação para tão pretensiosa denominação. Não há qualquer outra alegação extraordinária nessa apresentação, e títulos exagerados é algo a que estamos (infelizmente) habituados.

É que neurónios a processar informação (é o trabalho deles) há pelo corpo todo, assim como agrupamentos e redes deles, e se chamamos ao coração "pequeno cérebro" temos de chamar pequeno cérebro a qualquer rede neuronal que exista, desde os intestinos, à bexiga, passando pelos músculos, vários  plexos, aos  gânglios do simpático e parasimpático etc. Estaríamos cheios de pequenos cérebros (2).

De notar que o sistema nervoso autonomo simpatico e parasimpático são em grande parte responsáveis pela resposta cardiaca. Adiante.

Como disse, se considerarmos pequeno cérebro algo como plexos ou gânglios teríamos muitos mais pequenos cérebros. Por exemplo no blog Neurologica, o Steven Novella critica um autor que quer por o segundo cérebro no aparelho digestivo (3) onde a quantidade de gânglios nervosos e neurónios envolvidos é de facto enorme.

De resto sabemos que o "grande cérebro", o lá de cima, conta com os "pequenos cérebros" todos para construir um mapa do corpo e dar assim origem às emoções. As emoções são programas de acção corporais  desde as visceras até aos musculos que são mapeadas e processadas no cérebro em sentimentos de emoções. 

Resumindo, é tolice andar a chamar pequeno cérebro ao coração, senão pequenos cérebros havia muitos. Por outro lado, o cérebro, o verdadeiro, é capaz de um processamento de tantas fontes de informação diferente em paralelo e dar respostas tão globais em simultâneo que não faz sentido andar a falar em pequenos cerebros pelo corpo. Só temos defacto uma unicade de processamento geral, e na melhor das hipoteses cada hemisfério seria o mais próximo que temos de "pequeno cérebro".

A minha contestação ao nome não é por não gostar de metáforas. É porque não é mesmo adequado. E isso levantou a minha dúvida quanto ao resto do que poderia ter sido dito nesse documentário.

A procura pela origem do termo "pequeno cérebro" para designar o  coração, que afinal é uma alegação que tem cerca de 20 anos e não é fruto de nenhuma descoberta recente, levou-me até uma empresa chamada Heartmath (4). É aí que mais tarde ou mais cedo as referências vão dar e foi já a partir daqui que cheguei à apresentação do Armour.

 
A Hearthmath vende uma máquina que mede a variação do ritmo cardíaco e que promete atingir um estado de "coherencia" dos vários sistemas organicos através do seu uso. (mative o "h" extra em coHerencia para não confundir com coerencia que é o que falta aqui).


O termo  "coherencia" é aproveitado da mecanica quântica e é relativo à interferência de ondas quânticas de probabilidade. Coisa que é um fenómeno que não acontece à escala macroscópica mas que os autores decidiram usar de um modo que não dá para perceber quando estão a importar mais fenómenos quanticos para a biologia ou quando estão a inventar simplesmente ou até a dizer banalidades vagas. Coherencia para eles é a sincronização de várias funções vitais e da optimização das suas ondas ciclicas (!). Dizem que se atingirmos um estado de coerência que passamos a pensar melhor, somos mais criativos, etc. É só usar a tecnologia por eles descoberta. Existem de facto ritmos e variações de ritmo na fisiologia, mas o modo como propõe que esses ritmos se devem sincronizar e o que dizem que se conseguepor esse modo é absolutamente inédito. Infelizmente não me parece ter plausíbilidade nenhuma.

Todo o site da Heartmath cheira a pseudociência misturando factos ciêntificos com teorias originais pouco plausiveis (como esta da coherencia), que são fundamentadas em artigos por eles próprios produzidos ,  publicados em revistas tão pouco credíveis como o "Jornal of alternative and complementary medicine" e companhia.

O seu investigador mais referido  chama-se  McCraty e é ele que propõe a chamada coherencia fisiológica e diz coisas como " é postulado que conforme o numero de pessoas a adicionar energia coherente ao campo global, isso ajudará a estabilizar ciclos de feedback mutuamente benéficos entre os seres humanos e a própria Terra."(4)

E isto logo no primeiro artigo da lista de bibliografia que eles facultam para consulta. Este tipo de coisas requerem evidencias fortes para fundamentar. Fortíssimas! É uma alegação para além do extraordinário a precisar de evidencias mais que extraordinárias para justificar mandar a ciência tal como a conhecemos para o caixote do lixo e reformular tudo de modo a que afirmações como esta façam sentido. Não é o tipo de coisa que possa ser dita com se se estivesse a propor que correr cansa, e publicar em revistas de credibilidade duvidosa. A não ser que a credibilidade duvidosa lhes chegue e não precisem de persuadir um publico culto e exigente...


Mas há mais, muito mais.

Précognição: "parte da decisão e acção  empreendedora que não é baseada na memória ou raciocínio mas na consciência de uma informação vinda do futuro energéticamente codificada." (5)

Propor que a seta do tempo não existe, ou seja, que a causalidade possa ser direcionada para o futuro ou o passado, coisa que teria de acontecer para haver informação vinda do futuro, contraria tudo que sabemos, não só de fisica mas do conhecimento geral como ser dificil ganhar a lotaria, ser preciso estudar para passar exames, os casinos estarem a ganhar dinheiro, etc. Já para não falar do termo "enérgicamente codificada"...

Parece que têm ainda um plano para "medir efectivamente as ondas cerebrais e cardiacas do planeta Terra" (6). Em tempo real, dizem eles! (não vá haver dúvidas do que estão a fazer).

Dizem ainda que são uma instituição sem fins lucrativos, apesar de venderem uma série de coisas para que possamos levar uma vida mais centrada no coração.

Acrescento ainda que dei uma vista de olhos nos artigos que eles publicam para provar as melhorias reais no rendimento das pessoas. E que achei que eram muito fracos, por não serem duplamente cegos e não terem controle com placebo. Têm controle,  mas sem substituição por um placebo qualquer, o que à partida permite atribuir qualquer efeito de tratamento no estudo da "coherencia" ao efeito placebo. Sabemos que basta falar em histórias de sucesso antes de um exame para melhorar os resultados. Mas sinceramente acho que não vale a pena perder muito mais tempo com isto.

É apenas mais uma pseudociência. E citando directamente sem tradução só mais uma pérola irresistível:

"Research has shown that 0.1Hz is the human resonant frequency—the frequency at which spirit, heart, mind, emotions, and body are in resonant"

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Referencias:
(1)http://www.heartbrain.org/resources/2006hbsummitproceedings/articles/littlebrain_heart.html
(2) http://en.wikipedia.org/wiki/File:Gray838.png
(3) http://theness.com/neurologicablog/?p=118
(4) http://www.heartmath.org/research/research-publications/coherence-bridging-personal-social-global-health.html
(5) http://www.heartmath.org/research/research-publications/before-cognition-the-active-contribution-of-the-heart.html
(6) http://www.heartmath.com/about/institute-of-heartmath.html

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